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25 novembro 2014

Contas Abertas

O jornal Brasil Econômico fez uma entrevista com Gil Castello Branco, do Contas Abertas. Eis um extrato:

Que lições tirar da Operação Lava Jato?

Sem dúvida, é o maior escândalo de corrupção que o Brasil já teve. Além dos valores vultosos, este episódio envolve as maiores empreiteiras do Brasil, as maiores doadoras de campanha, três partidos da base governista e ainda dezenas de políticos citados. Até agora, nada na história do Brasil teve essa dimensão. Basta lembrar que o mensalão, segundo levantamento do Ministério Público, envolveu R$ 145 milhões. Agora falam-se em R$ 10 bilhões ou R$ 20 bilhões. Este volume por si só já mostra as proporções em relação a situações anteriores.

(...) Qual é o tamanho dessa relação entre empreiteiras e governo?

É muito mais fácil hoje desviar recursos das empresas estatais do que propriamente das administrações diretas. Por mais que se tenha falado tanto das privatizações, ainda existem quase 100 estatais, se incluirmos as do sistema financeiro. De acordo com o Programa de Dispêndios Globais (PDG) elas movimentam recursos de R$ 1,4 trilhão por ano. Isto é ligeiramente superior ao PIB da Argentina. Elas empregam meio milhão de funcionários e possuem um cenário ideal para a corrupção prosperar. Primeiro, são muitos recursos. Para se ter uma ideia, em 2013, na União, se considerarmos os investimentos de todos os ministérios, as obras do Judiciário e as do Legislativo, os gastos somaram R$ 47 bilhões, enquanto nas estatais só os investimentos da Petrobras foram R$ 99,2 bilhões. Considerando as estatais como um todo, excluindo as do sistema financeiro (Banco do Brasil e Caixa Econômica entre outras), os investimentos chegam a R$ 113 bilhões. Por si só, isso demonstra que os investimentos das estatais são mais do que o dobro dos investimentos da União. A primeira condição propícia para a corrupção prosperar é a existência de um volume incrível de recursos públicos. A segunda é muita ingerência política com pouca exposição. Sabe-se sempre quem é o ministro, mas existe uma dificuldade de saber, por exemplo, quem é o diretor de serviços da Petrobras ou da Eletrobrás. Por fim, muito pouca transparência. Por tudo isso, as estatais viraram a Disneylândia dos políticos.

Como explicar a pouca transparência? Por que os dados dos contratos das estatais não são divulgados?

No caso da administração direta, hoje é perfeitamente possível se saber o que foi investido até ontem e saber a quem foi pago, que valor foi pago, que quantidade foi adquirida. Por meio do sistema de convênios (Siconv) se dá até um passo maior, é possível saber o que a União transferiu para estados e municípios, e depois o que esse município comprou. É possível ir até o terceiro nível de observação de para onde o recurso público foi encaminhado. No caso da Petrobras, numa comparação idêntica, a informação sobre quanto ela investiu no mês de novembro só vai ser disponibilizada para a sociedade numa portaria do Ministério do Planejamento no final de janeiro.

Mas essa portaria tem o nível de detalhamento dos dados da União?

Não. Não se sabe quais as empreiteiras contratadas, nem quais empreendimentos, valores globais, valores unitários. Simplesmente sabe-se o quanto ela investiu em um total de programas, mas não se tem as informações minuciosas que se tem na administração direta. Por isso hoje ficou muito mais fácil desviar recursos da administração indireta, fazendo com que as estatais sejam figurinhas carimbadas no álbum da corrupção. 


(...) Faltou controle?

Está claro que é preciso rever os controles das estatais, aumentando a transparência em relação à gestão e aos valores. No escândalo da Petrobras chama atenção o fato de que estamos falando de um crime sistematizado. Não se trata de um crime localizado em uma ou outra obra. É um crime institucionalizado, sistematizado, com método, que acontece há aproximadamente dez anos ou mais. Chama atenção o fato de isso ter passado despercebido pelos órgãos de controle interno da Petrobras, pelos órgãos de auditoria externa, pelo Conselho Fiscal, pelo Conselho de Administração, pela CVM, pelo Dest (Departamento de Coordenação e Governança das Empresas Estatais), pela CGU e pelo TCU. Ainda que eles tenham levantado — sobretudo o TCU — várias situações de irregularidade em obras específicas, jamais havia sido mencionada a existência de uma organização criminosa, de um cartel atuando dentro da Petrobras.

O que fazer?

A primeira conclusão é que vamos precisar rever os sistemas de controles, porque até então as estatais se escondiam atrás de um mantra de que não poderiam ser mais transparentes porque isso iria prejudicar a atuação delas no mercado. Não se vê, no organograma da Petrobras, uma diretoria dedicada à governança. Não sei qual órgão existente na Petrobras que faz um trabalho de inteligência, de prevenir a corrupção, de compliance, que é praticado internacionalmente. A Petrobras não tem nenhum órgão que claramente tenha essa preocupação.

As normas nas estatais são flexíveis demais?

Sim. Elas não são obrigadas a respeitar a lei das licitações. A Petrobras tem um decreto próprio, de 1998, que rege as suas licitações, com diversas falhas. Por causa do decreto, mais de 60% das contratações de bens feitas nos últimos quatro anos pela Petrobras foram sem licitação, segundo o TCU. Tudo isso precisa ser revisto. Ficou absolutamente clara a falência dos sistemas de controle das empresas estatais. Se isso aconteceu na Petrobras, é plenamente possível admitir que este escândalo tenha outras vertentes nas demais estatais, como a Eletrobras.

A que o sr. atribui tantas regras permissivas perdurarem por tantos anos?

As estatais vêm sendo completamente avessas à transparência. Se na administração direta temos o famoso Portal da Transparência e o Siga Brasil, por exemplo, na indireta não existe um portal que contenha as informações que a sociedade precisa saber. Há apenas informações esparsas que chegam através dos investimentos.

A Lei de Acesso à Informação não chega às estatais?

Assim que surgiu a lei, fizemos um pedido para testar a sua eficácia. Pedimos à Petrobras o PDG, que é repassado pela estatal para o Ministério do Planejamento, e fizemos o mesmo pedido ao Ministério. A estatal negou por escrito a informação, alegando que poderia prejudicar sua governança. O documento traz apenas dados consolidados, globais, sem entrar em detalhes acerca de fornecedores ou detalhes de preço. Curiosamente o Planejamento forneceu a informação. Chega a haver uma falta de diálogo: a Petrobras considera sigiloso aquilo que o Ministério não considera. As estatais estão submetidas à Lei da Transparência. Mas há uma incoerência. A edição do decreto (que regulamenta a lei) demorou uma eternidade e o que corria na Esplanada era que o decreto não saía porque as estatais não estavam de acordo com a transparência. O que aconteceu foi um decreto que contrariou a lei. Saiu com uma redação que interessava às estatais, que permite que elas praticamente estejam fora desse contexto. O decreto a rigor deveria ser considerado irregular, porque restringiu a lei.

De quem é a culpa?

Não podemos nem só culpar os agentes do governo. No próprio Conselho de Administração (da Petrobras) havia empresários do porte de (Jorge) Gerdau, um executivo experimentado. As pessoas falam que Dilma fazia parte do Conselho, que havia interesses políticos e que foi feita vista grossa. Mas é possível que, de fato, tenha chegado uma informação precária ao Conselho, ou o Conselho, pela própria sistemática de aprovação das decisões, não funcionou. O que se percebe é que, em muitos casos, esses conselhos funcionam unicamente para avalizar a decisão que já foi tomada na empresa. Há uma reunião periódica, que gera um belo jeton para os integrantes do governo ou outros participantes, e a impressão que se tem é que eles chegam ali, tomam um café, escutam uma apresentação e concordam com aquilo. Depois, quando surgem as irregularidades, se justificam dizendo que não tinham informações suficientes. É preciso rever esses conselhos, que custam caro e estão sendo ineficientes.

Sempre foi assim?

A novidade agora é a situação ficar caracterizada como um sistema, e não como fatos isolados. A delação premiada é também um diferencial. Os operadores, desta vez, adotaram uma postura diferente dos operadores do mensalão. Os do mensalão optaram por ficar em silêncio, talvez confiando que alguns poderosos iriam resgatá-los no momento final. Quando Marcos Valério viu que isso não iria acontecer, tentou partir para a delação premiada, mas já era tarde. Isso de certa forma teve um caráter pedagógico para os operadores do petróleo, que resolveram adotar a estratégia da delação premiada, que vai trazer à tona muito mais detalhes. A investigação talvez traga, até, toda a engrenagem do sistema, o que até poderia ser institucionalizado para trás, mas nós não conhecíamos. Quando a delação vem à tona, descobre-se que já existiam referências gravíssimas à atuação da Petrobras, em parte pelo TCU e em parte pela CGU, mas eram situações isoladas, que nunca foram efetivamente investigadas. Essa sensação de que as estatais estavam acima do bem e do mal, que não precisavam prestar contas a ninguém e tinham que ser independentes e não podiam ficar amarradas pela burocracia do Executivo, nos levou a este caos.

De onde deve vir esse aperfeiçoamento?

Depois que a porta foi arrombada, vemos a Petrobras falando da criação de um departamento ou diretoria que teria essa função de se preocupar com a governança e rever as normas. Não é algo novo do ponto de vista internacional. Chama a atenção que uma empresa que está entre as maiores do mundo, a maior do Brasil, não estivesse preocupada anteriormente. Se as estatais não criarem os controles, isso vai ter que acontecer, seja por imposição do Executivo, do Legislativo ou até do Judiciário.

O que seria essencial para impedir que escândalos como o da Petrobras se repitam?

O que foi decidido pela maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.650, que questiona o financiamento empresarial de campanha: que não mais acontecerá. Falta, para se consumar, o retorno do voto do ministro Gilmar Mendes. É incrível que ele não seja cobrado por seus pares. A decisão foi tomada, Mendes pediu vistas e ainda não devolveu, inviabilizando que a decisão da maioria seja colocada em prática nas próximas eleições. É inadmissível que a reflexão de um único ministro impeça uma decisão que já tem maioria. Essa relação (entre empresas e políticos) é extremamente promíscua em todas as instâncias — federal, municipais, estaduais. As empresas não votam, mas elegem. O poder econômico tem uma influência decisiva no processo eleitoral. Percebe-se que não há o financiamento por espírito democrático, tanto que as empresas financiam candidatos adversários. Isto ficou claro no episódio da Marina Silva. Enquanto o candidato era Eduardo Campos, e as pesquisas apontavam baixo percentual para ele, as doações foram minguadas. Quando Marina apareceu como uma possibilidade concreta, as doações cresceram. Eles financiam estrategicamente os estados onde têm negócios. É algo absolutamente dirigido, seletivo, direcionado pelos investimentos. Os empresários não contribuem com as campanhas por amor à democracia: investem na expectativa de retorno. O que o escândalo da Petrobras mostra é como se dá o retorno. As aplicações são volumosas, tem que ser rentáveis e isso acontece dessas formas. São facilidades nas licitações, para ganhar disputas, depois valores superfaturados, aditivos. Deve acontecer há vários anos, vários governos.

(...) O que esperar do acordo de leniência com a CGU?

Não se trata de um acordo de leniência, e sim de conveniência. A preocupação delas ao procurar a CGU é ser enquadrada como inidônea. O ministro Jorge Hage já deu as condições para esse acordo: elas teriam que devolver os recursos, repactuar os contratos, narrar as irregularidades e identificar envolvidos no setor público. Haje vai fazer uso da Lei Anticorrupção, sancionada em janeiro, mas ainda não regulamentada. Por essa lei, as multas das empresas serão reduzidas drasticamente e elas vão continuar mantendo suas relações com o Estado. A saída política vai ser via CGU. Sob o ponto de vista ético e moral isso é imperfeito, é o mesmo que admitir que um ladrão, pego por assaltar um banco, devolva o dinheiro, assuma certos compromissos, e aí poderá continuar trabalhando com o banco. Para que a sociedade possa se sentir satisfeita, vai depender muito do que acontecerá em termos de punição criminal, inclusive para esses dirigentes, que agora se colocam como vítima. Espero que o Cade caracterize a formação de cartel e a Justiça do Paraná puna as pessoas envolvidas. Será uma enorme frustração se essa montanha parir um rato. (...)

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