Olá, durante minhas férias subestimei minha capacidade de leitura e o interesse pelo livro Helifort Sky, de Clayton Mello. As páginas da aventura juvenil escrita pelo doutor de Ciências Contábeis e professor da UFRN foram vencidas rapidamente. A aventura do herói prendeu a atenção e fez com que o único livro físico que levei na viagem fosse consumido em alguns poucos dias. Tentei preencher meus dias com algumas leituras acumuladas, mas precisava de outro livro. No app do Kindle tinha Sem Esforço, de Greg McKeow, uma obra pequena, que dá dicas sobre como fazer algumas coisas consumindo menos energia do que fazemos. E para finalizar, também li A Premonição, de Michael Lewis - de Moneyball e O projeto desfazer.
É sobre este último livro que surgiu a ideia desta postagem. Lewis conta a história de alguns personagens da pandemia. Seu foco está Bob Glass, que construiu um modelo matemático para entender o processo de contaminação da sociedade por parte de um vírus; em Charaty Dean, uma agente de saúde, que luta contra a visão estreita do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) (1); Carter Mecher, um conselheiro da área de saúde (2), e Richard Hatchett, que desenvolveram uma parceria e discutiram o assunto antes da doença alastrar; Joe DeRisi, um cientista que desenvolveu um chip para identificar um vírus.
O que achei interessante foi a ideia de Carter Mecher de camadas múltiplas como estratégia para combater um problema de saúde grave, como ocorreu em 2020. Segundo a estratégia, Targeted Layered Contention (Contenção Dirigida em Camadas), uma medida isolada não seria suficiente para resolver uma doença. A abordagem era combinar estratégias em razão das características de um problema sério de saúde pública e ao comportamento da população. Isto estava previsto no modelo de Bob Glass. Antes de março de 2020, Glass tinha mostrado, em uma simulação, que medidas poderiam funcionar. Mais ainda, que nenhuma medida isolada seria capaz de resolver o problema. O isolamento social, proposto por Lisa Koonin (3), era apenas uma das medidas. Sobre o isolamento social, os opositores desta medida usaram a gripe de 1918 como um argumento; o livro “definitivo” sobre esta gripe, de John Barry (4), afirmava que o isolamento social não tinha funcionado na Filadélfia.
O livro de Barry foi lido pelo então presidente Bush, que forçou a criação de uma estratégia de contenção de uma doença. Mas a afirmação sobre a questão do isolamento social estava baseada em dados fragéis. Uma pesquisa de Hatchett, Carter e Lipsitch, publicada em 2007 (5), mostrava que uma realidade diferente, onde o isolamento social foi implantado de forma tardia e inadequada.
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A ideia de camadas múltiplas é bastante interessante e pode ter sua aplicação na contabilidade. Vamos pensar em um dos papéis que a contabilidade pode ajudar na gestão de uma empresa: permitir sua continuidade. Ao criar mecanismos de registro e acompanhamento do que está ocorrendo com e na entidade, a contabilidade é importante para que a sobrevivência seja mais provável.
Se considerarmos bons relatórios sobre a situação de uma entidade como sendo um aspecto importante para as decisões, a noção das camadas múltiplas pode ser interessante. Existe uma expectativa que o relatório do auditor externo seja suficiente para assegurar a qualidade da informação. Mas ao longo do tempo, os mecanismos em uma entidade moderna foram além. Há o conselho de auditoria, o conselho de administração, a própria auditoria interna, os canais de denúncia, a área de controladoria, o supervisor do mercado e até o próprio mercado. Cada um pode ser uma maneira de proteger a empresa de gestores com ética inadequada.
Mas assim como na área médica, nenhum deles sozinho, por si só, seja suficiente. É bem verdade que isto não é uma garantia para a continuidade. Afinal, as decisões ruins podem ser tomadas e comprometer a entidade sem que existam problemas de falcatruas. E até mesmo pode não impedir estas falcatruas, mas realmente reduz a chance. Isto é o aspecto mais interessante.
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Um ponto interessante nas camadas múltiplas (6) na contabilidade é que isto não apareceu de forma proposital e ordenada. Se antes o auditor interno era suficiente, o acesso ao mercado de capitais fez surgir a necessidade de também termos um auditor externo. E grandes corporações não poderiam depender somente destes dois profissionais e por isto o surgimento dos conselhos, dos reguladores e das outras camadas.
Mas há um aspecto irracional neste modelo. Em muitos casos, duas ou mais pessoas estarão fazendo a mesma função. Isto consome recursos, aumenta os custos da estrutura administrativa. Esta poderia ser uma daquelas situações para o cálculo da análise do custo e do benefício do modelo de múltiplas camadas. Mesmo que algumas das camadas sejam condições exigidas em lei para o funcionamento da entidade, isto não impede que isto seja feito.
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(1) Ver, por exemplo, o verbete da Wikipedia sobre a entidade e suas decisões durante a pandemia: https://en.wikipedia.org/wiki/Centers_for_Disease_Control_and_Prevention . Na mesma Wikipedia você pode encontrar um pequeno verbete sobre Charaty: https://en.wikipedia.org/wiki/Charity_Dean
(2) Ao contrário de Charity, a Wikipedia traz uma pequena citação de Mecher. O livro considera que Mecher foi uma espécie de guru para um pequeno grupo que sabia dos perigos da pandemia. Já Richard Hatchett https://en.wikipedia.org/wiki/Richard_Hatchett, citado a seguir, ocupou cargos no governo federal e é mais conhecido do público externo. DeRisi é bastante elogiado no livro e um resumo também aparece na enciclopédia em https://en.wikipedia.org/wiki/Joseph_DeRisi
(3) Veja sobre ela em https://en.wikipedia.org/wiki/Lisa_M._Koonin
(4) O livro tem uma tradução para o português, A Grande Gripe, com quase mil avaliações na Amazon.
(5) Esta pesquisa, com o título Public health interventions and epidemic intensity during the 1918 influenza pandemic, foi importante para derrubar o argumento. Mas a influência do livro ainda persiste: Hatchett, Richard J., Carter E. Mecher, and Marc Lipsitch. "Public health interventions and epidemic intensity during the 1918 influenza pandemic." Proceedings of the National Academy of Sciences 104.18 (2007): 7582-7587. O livro mostra também alguns “vilões”, como Sonia Angell https://en.wikipedia.org/wiki/Sonia_Y._Angell, que seria considerada inadequada e atrapalhou a implantação de medidas mais efetivas.
(6) O livro não usa o termo “camadas múltiplas” mas somente camadas ou camadas sobrepostas.