Translate

21 junho 2025

Grandes Civilizações e a Contabilidade: Peru

Peru 


O cordão com nós pode ser o dispositivo contábil mais antigo do mundo. Lyle Jacobsen descreveu seu uso na pré-história do Havaí, nas Ilhas Marquesas e na China antiga, onde o uso de cordões com nós para registros aparentemente antecedeu o surgimento da linguagem escrita, por volta de 3300 a.C.

O uso mais bem documentado da numeração por cordões com nós ocorreu no Peru. O quipu foi utilizado pelos incas, a partir de aproximadamente 1200 d.C., como um dispositivo de contagem e registro. Consistia em um cordão de algodão ou lã, com comprimento que variava de alguns centímetros a mais de um metro, ao qual eram presos um ou mais cordões secundários com nós. As cores desses cordões muitas vezes indicavam os tipos de itens registrados, enquanto o tamanho de cada nó e sua distância em relação ao cordão principal representavam números específicos, baseados em um sistema decimal. Um único nó na extremidade inferior do cordão representava um; dois nós na mesma posição indicavam dois; um nó mais próximo do cordão principal representava dez; um nó ainda mais próximo indicava cem, e assim sucessivamente. Foram encontrados quipus com nós que registravam centenas de milhares de itens.

Os homens especializados na confecção e leitura dos quipus eram chamados de quipucamayocs. Eles acumulavam as funções de escribas, contadores, estatísticos e historiadores. Assim como os recenseadores modernos, eles contavam os habitantes de cada aldeia, registravam nascimentos e mortes e especificavam o número de homens disponíveis para o serviço militar. Também ajudavam na alocação de recursos dentro do império, registrando impostos devidos, receitas do governo, inventários dos armazéns e até as quantidades de matérias-primas distribuídas aos tecelões e os volumes de tecidos produzidos. Todas essas informações eram registradas nos quipus e enviadas, por mensageiros, à capital, Cuzco.

O Império Inca era um paradoxo: uma economia altamente centralizada e planejada que funcionava sem linguagem escrita ou moeda cunhada. O quipu e os quipucamayocs eram elementos centrais de sua administração.

Michael Chatfield para The History of Accounting

Já postamos sobre o assunto aqui e aqui. Um verbete bem extenso sobre os quipus pode ser encontrado aqui

Grandes civilizações e a Contabilidade: Roma

Roma (509 a.C. – 476 d.C.)

A cidade de Roma foi o centro da República Romana (509–27 a.C.) e do Império Romano (27 a.C.–476 d.C.). Após derrotar e destruir Cartago em 146 a.C., a República Romana passou a controlar o Mediterrâneo, abrangendo desde o Norte da África, Síria, Macedônia, Grécia até o Egito. Figuras notáveis desse período foram Mário, Sula, Pompeu, Cícero e Júlio César. O primeiro imperador foi César Augusto, em 27 a.C.; outros imperadores de destaque nos primeiros 200 anos foram Trajano, Adriano, Antonino Pio e Marco Aurélio. Ao final do segundo século, o Império Romano se estendia pelas regiões do Reno, Danúbio, Ásia Menor, Síria, Palestina, Egito, África, Espanha, França e Grã-Bretanha. Havia 43 províncias a serem administradas, todas conectadas por um complexo sistema de estradas. Aquedutos forneciam água — muitos dos quais ainda existem hoje. O cristianismo tornou-se a religião oficial do império em 313, sob Constantino I. Em 395, o império foi dividido em duas partes: o Império Romano do Oriente, governado em Constantinopla, e o Império Romano do Ocidente, governado em Roma. Em 410, Roma foi saqueada, e em 476 o chefe germânico Odoacro depôs o último imperador do Império Romano do Ocidente. O Império Romano do Oriente continuou até 1453, quando Constantinopla caiu. Roma possuía uma língua altamente desenvolvida e versátil, o latim, e seus habitantes escreviam com escrita cursiva em papiro. Roma também contava com um excelente sistema jurídico e utilizava a moeda da Grécia como sua moeda internacional. A paz romana vigorou por muitos anos.


O comércio altamente desenvolvido de Roma foi descrito por Herbermann (1880). Os banqueiros eram considerados com grande respeito e mantinham correspondentes em várias partes do império. Formavam-se companhias para arrecadação das receitas públicas. O empréstimo de dinheiro a altas taxas de juros era bastante comum. Os banqueiros romanos estavam sob controle do Estado; a lei exigia que mantivessem livros contábeis para servirem como prova legal em tribunal, além de determinar que esses livros estivessem abertos à inspeção dos oficiais da cidade.

Littleton (1933) considerou que havia sete fatores necessários para a prática da escrituração contábil por partidas dobradas: (1) propriedade privada, (2) capital, (3) comércio, (4) crédito, (5) escrita, (6) dinheiro e (7) aritmética. Littleton, renomado historiador e teórico da contabilidade da Universidade de Illinois, acreditava que a complexidade da aritmética — agravada pelo uso dos numerais romanos — e a ausência da noção de capital produtivo tornavam improvável que a escrituração por partidas dobradas existisse em Roma. Os registros das famílias romanas eram pouco mais do que anotações de recebimentos e pagamentos.

Littleton escreveu que o equilíbrio e a dualidade precisariam ser adicionados ao elemento de propriedade comercial antes que a contabilidade por partidas dobradas pudesse ser implementada. Como o comércio era visto como indigno para um patrício romano — trazendo, inclusive, implicações negativas para seus direitos políticos como cidadão —, é provável que apenas escravos instruídos cuidassem dos negócios e dos registros, utilizando um sistema de contas baseado na lógica de “entrada e saída” (charge-discharge).

O desenvolvimento avançado do direito e do sistema bancário romano certamente teve um papel significativo na manutenção dos registros. Littleton acreditava que os bancos romanos, bem desenvolvidos, poderiam ter levado naturalmente a um sistema autossuficiente de lançamentos duplos em contas bilaterais. Contudo, é questionável se esse conhecimento sobreviveu no sistema bancário durante os longos Séculos Escuros (476–1000 d.C.), que antecederam a retomada do comércio nas cidades-estado italianas.

O fascínio pela contabilidade por partidas dobradas e pelos registros antigos também influenciou outros estudiosos da contabilidade, além de Littleton.

Kats (1929, 1930), que tinha a vantagem de ser fluente em diferentes idiomas, trabalhou com os escritos de Fabio Besta (em italiano), Rudolph Beigel (em alemão) e Raymond de Roover (em francês). Em um artigo de 1930, Kats escreveu que não encontrou valores monetários associados aos registros de mercadorias em Roma, mas que valores em dinheiro eram registrados para caixa, contas a receber e contas a pagar. Ele também destacou os seguintes registros de uma família romana abastada: adversaria (livro rascunho ou livro diário provisório); codex accepti et expensi (livro-caixa); codex rationum mortalium (um razão contendo contas pessoais); e codex rationum domesticarum (registros apenas de quantidades).

Em um artigo de 1929, Kats concluiu que a contabilidade por partidas dobradas surgiu devido à relação entre escravo e senhor na economia romana: “A contabilidade por partidas dobradas começou quando, pela primeira vez, os créditos do senhor e as obrigações do devedor foram balanceados entre si nos livros de um escravo romano.”

Peragallo (1938) destacou a continuidade da cultura romana durante toda a Idade Média, argumentando que, como a propriedade privada não desapareceu, o sistema contábil romano permaneceu. Peragallo acreditava que a contabilidade por partidas dobradas poderia ter estado presente de forma embrionária no sistema contábil romano.

Por outro lado, De Ste. Croix (1956) foi bastante enfático ao afirmar que os romanos não utilizavam partidas dobradas. Ele defendia que o sistema econômico romano não havia se desenvolvido a ponto de exigir esse tipo de contabilidade, além de considerar que os numerais romanos eram inadequados para esse fim, uma vez que não eram organizados em colunas. De Ste. Croix argumentava que a contabilidade na Antiguidade existia sobretudo para expor perdas causadas por fraudes ou ineficiências dos servos e outros agentes do proprietário. No entanto, ele relatou a anomalia de uma conta bilateral encontrada em Karanis, datada de 191–192 d.C., na qual lançamentos no formato atual de partidas dobradas parecem ter ocorrido.

De Ste. Croix também apresentou o exemplo do uso, por Columela — autor de um tratado agrícola de 12 livros, De Re Rustica, por volta de 60 d.C. —, de uma estimativa conservadora dos lucros provenientes do cultivo de vinhas. Além disso, escreveu que o famoso orador e advogado romano Cícero mencionou, em um julgamento, os registros domésticos de uma família rica. Marcus Porcius Cato (234–149 a.C.), em seu tratado sobre agricultura De Agri Cultura, recomendava que o proprietário rural revisasse os registros de caixa e os diversos inventários sempre que visitasse sua fazenda, além de conferir frequentemente as contas do escravo administrador, como também observado por De Ste. Croix.

Most (1979) questionou algumas das premissas de De Ste. Croix. Most considerava que o sistema econômico romano era altamente desenvolvido e argumentava que a ausência de colunas para os números não tornava impossível a prática da contabilidade por partidas dobradas. Ele também fez referência a uma obra alemã de B.G. Niebuhr, que estudou fragmentos da oração Pro Fonteio de Cícero, preservados na Biblioteca do Vaticano, e concluiu que esses documentos sugeriam a existência de partidas dobradas.

A controvérsia sobre as partidas dobradas não deve obscurecer o fato de que diferentes formas de documentação contábil, controles e informações foram componentes importantes da civilização romana. Manuais de agricultura, leis, registros de argumentos jurídicos e documentos governamentais evidenciam essa importância.

Richard Vangermeersch para The History of Accounting

O texto discute a existência ou não de partidas dobradas. Há outros elementos interessantes na história de Roma que possuem consequências contábeis, como os aspectos relacionados com as finanças públicas do império. 

20 junho 2025

Rir é o melhor remédio


 Fonte: aqui

Riscos ao adotar a postura ESG e DEI


Um artigo do Australian Financial Review discute como ESG (Ambiental, Social e Governança) e DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão), antes vistos como pilares de responsabilidade corporativa, estão se tornando potenciais fontes de risco para os negócios. Nos Estados Unidos, essas práticas passaram a ser alvo de pressões políticas, ações judiciais e resistência cultural, fazendo com que muitas empresas repensem sua abordagem. 

O texto trata das repercussões na Austrália, onde conselhos e executivos começam a perceber que adotar ou expandir iniciativas de ESG e DEI pode gerar não apenas benefícios reputacionais, mas também exposição a riscos legais e críticas públicas. 

Como a pauta também foi adotada pela Fundação IFRS, e também pelo CFC/CPC, creio que pode também existir um risco aqui para as empresas brasileiras.  

Economia do casamento


Da revista The Economist (via aqui

 A mediana do dote pago pelas noivas em casamentos no campo dobrou em termos reais entre 2005 e 2020, segundo um estudo recente de Yifeng Wan, da Universidade Johns Hopkins. Os valores nas áreas urbanas também estão aumentando. Um dote de 380.000 yuans seria, de fato, bastante elevado na província de Guangdong, onde a mediana era de cerca de 42.000 yuans na última estimativa. Mas pareceria um pouco menos absurdo na vizinha Fujian, onde o valor típico é de 115.000 yuans.

Aqui um verbete na Wikipedia sobre o casamento na China Moderna

O mundo do faz de conta das normas das PMEs


A norma internacional de contabilidade para pequenas e médias empresas, elaborada pela Fundação IFRS, tem como premissa oferecer uma abordagem simplificada e mais adequada às características desse segmento. A iniciativa de consolidar, em um único documento, princípios contábeis ajustados à realidade das PMEs, considerando a relação custo-benefício, é, sem dúvida, meritória.

Entretanto, a tarefa de simplificar uma norma sem comprometer sua essência não é trivial. A terceira edição da norma, aprovada em fevereiro deste ano, levanta questionamentos relevantes. Por exemplo: quantas pequenas empresas, de fato, realizam consolidação de demonstrações financeiras? Arrisco dizer que esse percentual seria inferior a 1%. Isso me levou a refletir se minha percepção estaria desatualizada, especialmente ao observar que a nova versão dedica uma seção específica ao tema.

Da mesma forma, é pertinente questionar se a exigência do regime de competência, combinada com a adoção integral do modelo de reconhecimento de receita inspirado no IFRS 15 — com suas múltiplas etapas e detalhamentos —, se alinha às necessidades e capacidades operacionais das PMEs. Trata-se, sem dúvida, de um acréscimo significativo de complexidade.

Parece que as escolhas feitas acabam por atender mais aos interesses de consultores e de quem atua na interpretação e implantação das normas, do que propriamente às empresas e aos profissionais da contabilidade — ou, como prefere a Fundação IFRS, aos “preparadores”. Minha percepção de que essas mudanças são desfavoráveis aos contadores reside na expectativa de que muitas empresas simplesmente não irão adotar plenamente as exigências, sob a justificativa dos custos envolvidos, gerando um distanciamento entre a norma e a prática. Cria-se, assim, um ambiente em que se simula conformidade, sem que, de fato, se alcance a aplicação plena dos preceitos propostos.

Veja aqui um resumo da norma. Imagem: aqui, um mercador fazendo sua contabilidade, por Katsushika Hokusai.

19 junho 2025

Nova norma de reconhecimento da receita aumentou o preço no supermercado


Os reguladores muitas vezes elaboram normas sem considerar adequadamente suas consequências práticas. Um exemplo claro é a norma de reconhecimento da receita, desenvolvida em conjunto pelo FASB e pelo IASB — conhecida como IFRS 15 e traduzida para o português pelo CPC. Embora atenda aos objetivos técnicos daqueles que a aprovaram, seus efeitos podem ser bastante negativos para a sociedade como um todo.

Uma pesquisa recente ilustra bem esse impacto. Nos Estados Unidos, a norma foi incorporada ao padrão ASC 606. Alguns anos após sua adoção, um estudo envolvendo empresas do setor varejista revelou que os preços dos produtos nas prateleiras aumentaram, em média, 4,4%, efeito diretamente associado à mudança no reconhecimento da receita.

Na prática, a norma alterou o momento e a forma como as empresas reconhecem determinados itens. Antes, muitas organizações podiam reconhecer a receita no momento da entrega do produto ou da prestação do serviço. Com a nova regra, a receita só pode ser registrada quando todas as obrigações de desempenho previstas no contrato forem cumpridas — ou seja, quando o controle do bem ou serviço é efetivamente transferido ao cliente.

No caso dos varejistas analisados, a norma também impactou o tratamento de descontos, bonificações, programas de fidelidade e acordos com fornecedores. Incentivos que antes eram contabilizados como despesas futuras passaram a ser registrados como deduções na receita atual. Esse ajuste contábil reduziu artificialmente as margens apresentadas nos balanços, levando muitas empresas a reajustar os preços dos produtos para compensar a diferença.

Diante desse cenário, o que se esperaria seria uma discussão séria sobre a conveniência da norma, seus efeitos colaterais e, eventualmente, sua revisão ou até mesmo revogação, considerando o impacto sobre consumidores e a economia real. No entanto, resta a dúvida se os reguladores terão a coragem de reconhecer que erraram.