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15 junho 2018

Polêmica ou não

Um texto publicada há mais de uma mês. Mas não resisti em fazer alguns pequenos comentários, pois está recheado de pérolas.

Depois de dois anos de prejuízos bilionários, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) teve um surpreendente lucro de R$ 667 milhões em 2017, anunciou ontem o ministro Gilberto Kassab (Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações).

A virada nos números foi divulgada por Kassab, em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, como sinal de recuperação da saúde financeira da estatal. Para ele, esse resultado mostra que os Correios são viáveis como empresa pública (1) e tira da pauta uma eventual privatização (2). “Não se fala mais nisso”, afirmou o ministro, dando como superada (3) a grave crise enfrentada pela ECT nos últimos anos. Houve prejuízo de R$ 2,1 bilhões em 2015 e de R$ 1,5 bilhão em 2016. (4)

De acordo com Kassab, o balanço dos Correios foi aprovado na véspera pelo conselho fiscal e será remetido hoje para análise do conselho de administração (5).

Apesar da comemoração do ministro, a reviravolta foi vista com cautela. Até outubro, a estatal registrava déficit em torno de R$ 2 bilhões (6). Segundo pessoas ligadas à ECT, não houve inversão da tendência e esse rombo cresceu ainda mais no último bimestre do ano. O que houve foi uma mudança das premissas atuariais no registro conhecido como “benefício pósemprego”, com uma redução de gastos meramente contábil (7), sem refletir qualquer equilíbrio entre receitas e despesas. (8)

Em março, uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) restringiu o alcance da Postal Saúde, empresa criada pelos Correios em 2014 para gerir diretamente o convênio médico de seus 140 mil empregados e aposentados. (9)

O plano, que representava 90% do déficit anual da empresa, incluía outras 250 mil pessoas como cônjuges, pais e filhos.

A principal mudança avalizada pelo TST é a introdução da cobrança de mensalidade para titulares e dependentes. Pais e mães também serão excluídos a partir de julho de 2019. Com todas essas alterações, foi possível reduzir em aproximadamente R$ 3 bilhões o provisionamento futuro e os reflexos foram trazidos para valor presente. (10)

A operação contábil foi duramente criticada pelo representante dos trabalhadores no conselho de administração, Marcos César Silva, que prometeu votar pela rejeição ao balanço. Ele chamou o resultado de “forjado” e enfatizou que o lucro não decorre da “competência de políticos indevidamente colocados na direção da empresa”. “Votarei contra a aprovação das contas.” “A empresa tem a obrigação de explicar muito bem como um déficit que chegava em novembro a mais de R$ 2 bilhões virou um lucro de mais de R$ 600 milhões ao final do exercício”, completou. (11)

O próprio presidente interino dos Correios, Carlos Fortner, admitiu ter ficado surpreso com o lucro quando recebeu a notícia na semana passada. “Que mágica você fez?”, disse ter perguntado à equipe responsável pela contabilidade (12). Ele defendeu, porém, a legitimidade do cálculo e ressaltou: “Houve auditoria externa (13) e fomos crivados por questionamentos”.

A deputada Maria do Rosário (PTRS), uma das coordenadoras da Frente Parlamentar em Defesa dos Correios, ficou insatisfeita com as explicações. Ela discorda da análise de Kassab de que a privatização da companhia postal saiu do radar. “Não saiu e estamos atentos ao movimento. Já é uma prática comum resolver as contas do ponto de vista contábil (14) para apresentar ao mercado uma situação favorável à venda da empresa”, afirmou.

Um requerimento já foi protocolado na Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara para aprofundar as discussões sobre o resultado da ECT no ano passado. Maria do Rosário criticou também o indicativo de fechamento de mais de 500 agências próprias dos Correios, em localidades onde há sobreposição com agências franqueadas, por entender que a estatal deixa de faturar em pontos melhores.


(RITTNER, Daniel. Virada súbita no balanço dos correios cria polêmica. Valor, 10 de maio de 2018, B6, via aqui). Figura, aqui

(1) o lucro, por si só, não é suficiente para afirmar que uma empresa é viável.
(2) existe aqui uma lógica estranha. Só pode ser empresa pública se for viável, caso contrário, privatize. Na realidade, o resultado contábil não deveria ser a razão final desta decisão, mas a política de governo ou, em alguns casos, a constituição.
(3) novamente, o resultado de um ano não é suficiente para chegar a esta conclusão.
(4) observe que o prejuízo acumulado em três anos é de 3 bilhões. E a crise acabou, segundo o ministro.
(5) ou seja, o ministro divulgou os resultados antes da empresa dar conhecimento ao Conselho de Administração. E já considerou como uma crise superada, mesmo não tendo a aprovação do Conselho de Administração. Aqui, uma postagem sobre este assunto. Observe que o texto é bastante feliz em usar “análise” e não “aprovação”.
(6) Deve estar falando do déficit acumulado até esta data.
(7) se mudaram somente as “premissas atuariais” é muito estranho falar em “gastos meramente contábeis”. E faz sentido falar em “gastos meramente contábeis”?
(8) Na verdade, o reporter quer dizer que na parte operacional a empresa continua com problemas, onde as despesas são superiores as receitas. O que fez o resultado ser positivo foi uma alteração nas premissas atuariais que afetou o resultado da empresa.
(9) Aqui a razão da mudança. Tendo por base a decisão, a contabilidade da empresa parece que fez o correto, ao contrário do que induz a reportagem. Parece que ocorreu uma manipulação, mas existindo uma mudança como esta, a mesma deve ser reconhecida no resultado.
(10) Veja que faz sentido a decisão da contabilidade.
(11) A leitura das demonstrações e as explicações parecem coerentes. Bastava entender contabilidade. A posição do representante parece mais política que técnica.
(12) A fama da contabilidade e do contador ... Mas ele defendeu os números, pois são favoráveis.
(13) A auditoria externa fez ressalvas, inclusive de continuidade da empresa. Isto não está comentado na reportagem, provavelmente pelo fato do balanço não ser de conhecimento público na data de publicação do texto.
(14) O que ela falou mesmo? “resolver as contas do ponto de vista contábil” seria “manipular”? O contador da ECT deveria entrar com um processo de difamação contra a deputada.

P.S. Os números não permitem comemoração

2 comentários:

  1. Sobre o item 13, qual é o critério para diferenciar o que é "técnico" do que é "político"?

    Nesse caso específico, "a introdução da cobrança de mensalidade para titulares e dependentes" não foi uma decisão "política", transferindo aos trabalhadores um custo que anteriormente era assumido pela empresa?

    E ao "representar" a mudança avalizada pelo TST, a contabilidade não está contribuindo para chancelar essa decisão "política"?

    Não seria possível, por exemplo, manter o registro do passivo atuarial conforme as premissas anteriores e ajustar seu saldo por meio de uma conta retificadora, evidenciando os custos que a decisão do TST transferiu dos Correios aos trabalhadores? Ou isso pareceria mais "político" do que "técnico"?

    Tenho a impressão de que "técnico" é um qualificador reservado apenas aos procedimentos/discursos chancelados pelos normatizadores contábeis - os quais não incluem em seus quadros, via de regra, representantes dos trabalhadores ou de quaisquer outros grupos de stakeholders que não os detentores de capital. Assim, a promoção dos interesses do capital é sempre "técnica", e qualquer contestação a tais interesses é sempre "política". Eu, particularmente, não consigo imaginar nada mais político do que isso.

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