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06 junho 2022

Teoria da Agência e a Contabilidade - 2

Apesar disso, a teoria da agência é bastante popular na literatura, inclusive na literatura contábil (1). Mas a teoria da agência também está no radar daqueles que fazem as normas contábeis. King, no livro More than Numbers Game (2), afirma que a Declaração de Conceitos da Contabilidade Financeira, conhecida como SFAC 1 tem suas raízes no Relatório Trueblood e que a discussão sobre a responsabilidade da administração está vinculada aos problemas de agência, conforme citados por Jensen e Meckling (3).

A aplicação da Teoria da Agência é bastante ampla, mesmo sendo um ramo da teoria dos jogos (4). Uma dessas aplicações é a estruturação de contratos, de forma a motivar uma pessoa a agir em nome de outra, mesmo não sendo de seu livre interesse.

Em termos resumidos (5), há um principal, que delega certas tarefas e responsabilidades para uma outra pessoa, chamada de agente. A Teoria estuda as situações onde os interesses do principal são divergentes dos interesses do agente.

Vejamos uma situação comum em uma grande empresa. Os acionistas contratam um administrador para executar as funções necessárias para que a empresa possa atingir os seus propósitos. No exemplo, o principal são os acionistas e o agente é o executivo. Ao fazer a contratação, os acionistas esperam que a gestão do administrador possa gerar pagamento de dividendos. Mas o administrador pode estar interessado em reter o lucro na empresa, pois isto permite que tenha maior margem de manobra.

Ao final de um exercício social, com a apuração do lucro, o executivo irá propor uma distribuição para os acionistas. Estes podem estar interessados em ter o maior volume de dividendos possível; já o executivo terá interesse em reter o lucro, aumentando sua margem de manobra para o futuro (6). Uma forma de resolver esta situação, tornando os interesses do principal e do agente convergentes, é fazer um contrato com o executivo, onde parte da remuneração seja paga com a apuração dos resultados da empresa. Parece ser uma boa ideia, pois incentiva o executivo a não acumular lucro.

Considere agora a situação onde um executivo, o agente, tem um contrato de trabalho de dois anos com uma empresa. Agora é de sua responsabilidade a decisão sobre investir em pesquisa e desenvolvimento. Sua remuneração é composta por um salário fixo, mais uma participação nos lucros da empresa. A análise do investimento em P&D mostra que o gasto é importante e necessário no longo prazo da empresa. Mas os frutos do investimento são de longo prazo. O gestor, ao optar pela decisão de efetuar gastos com P&D poderá reduzir o lucro de curto prazo e, por consequência, sua remuneração (7).

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Os exemplos citados neste texto e no anterior mostram como a Teoria da Agência ajuda a entender a realidade e o comportamento das pessoas. Antes do surgimento da Teoria da Agência, assumia que as empresas eram administradas pelo seu dono. Ou quando existia uma separação entre o proprietário e o administrador, as coisas ocorriam como uma única pessoa no comando (8). Entretanto, no mundo atual, é cada vez mais comum a separação entre a gestão e a propriedade.

As atitudes do gestor podem ser diferentes daquelas esperadas pelo proprietário. O gestor corresponde ao agente, tendo seus próprios interesses. Enquanto o gestor opta por não fazer investimento em pesquisa e desenvolvimento, para o proprietário esta decisão é a correta. Conforme irei detalhar mais adiante, a Teoria da Agência ajuda a entender muitos aspectos da contabilidade. Conforme afirma Donleavy (9),

A contabilidade tem várias teorias relevantes (...); no entanto, essa teoria [teoria da agência] é muito mais importante do que todas as outras e é central para a compreensão da prática contábil, especialmente a prática contábil financeira.

A Teoria da Agência melhora nosso entendimento dos interesses do administrador na informação contábil, nos planos de remuneração e seu papel na motivação e no controle da operação da empresa. Os gerentes possuem um grande interesse na escolha da política contábil. Muitos deles querem influenciar as escolhas possíveis na contabilidade, afetando os resultados apresentados (10).

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Neste ponto já é possível explicitar duas condições necessárias para que exista um problema na relação entre o principal e o agente. Este problema, de forma resumida chamado de problema de agência, ocorre na presença de conflito de interesse e da assimetria da informação.

A primeira condição é bastante razoável. Se o principal e o agente possuem os mesmos interesses, não há um “problema” na relação. Isto pode acontecer, muitas vezes, na empresa familiar, onde a administradora é a filha e a proprietária é a mãe (11). A situação de conflito de interesse é possível de ser observada na figura que apresentamos anteriormente. Lá há uma seta que inicia e começa no principal e outra que tem o mesmo desenho no agente.

A segunda condição é o reconhecimento do fato de que as pessoas possuem não somente interesses, mas informações diferentes. O gestor sabe coisas que estão ocorrendo na empresa que o acionista não sabe. Isto também é válido para os exemplos que citamos no texto anterior. O fato de que as pessoas possuem informações diferentes sobre um determinado evento ou um determinado objeto ou uma empresa recebe o nome de informação assimétrica.

A informação assimétria é nomal na vida das pessoas. A famosa história de Salomão e as duas mulheres que afirmavam ser a mãe de uma criança é um exemplo de informação assimétrica. As mulheres sabiam quem estava falando a verdade, mas o rei Salomão não tinha esta informação. A famosa sabedoria de Salomão revelou-se quando ele solicitou que partissem a criança e desse uma parte para cada mulher (12). Uma das mulheres imediatamente abriu mão da criança, revelando ser a mãe verdadeira. Antes da decisão de Salomão, existia uma informação assimétrica. Após a sentença, a atitude da mãe fez com que a informação torna-se simétrica.

A Teoria da Agência reconhece que algumas pessoas possuem uma vantagem de informação sobre outras. Em razão disso, entendemos agora que o gestor tem interesse nos pronunciamentos contábeis pois diz respeito a assimetria da informação. Considere o caso do gestor e do proprietário. Em razão da separação da propriedade, o esforço do agente, o gestor, será difícil de ser observado pelo principal. A existência de assimetria de informação permitirá que o gestor não cumpra os interesses do principal. Um contrato de trabalho entre o proprietário e o gestor pode ajudar a reduzir este problema. Uma possível solução é relacionar a remuneração do gestor com medidas de desempenho que sejam observáveis pelo principal e pelo agente. O lucro é uma destas medidas. A comissão de vendas é outra.

A delegação de autoridade, do principal para o agente, com uma remuneração baseada no lucro é somente uma possibilidade que pode fazer com que os interesses do agente aproximem-se dos interesses do principal. É uma tentativa de fazer com que o agente comporte no sentido de também tentar maximizar os benefícios do principal. Uma solução como esta tem um custo, denominado de custo de agência, mas faz sentido quando pensamos que pode ajudar a resolver o problema de agência. Iremos comentar sobre os custos de agência a seguir.

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A Teoria da Agência estuda a relação entre um principal, que delega uma tarefa para um terceiro, o agente. Os interesses de ambos são divergentes e existe assimetria informacional. Isto cria um problema de agência, onde o agente não busca executar a tarefa visando os interesses do principal, mas sim os seus interesses. A solução do problema pode envolver alternativas que possuem um custo para o principal, o custo de agência. A contabilidade tem um papel importante na solução do problema de agência, assim como este problema explica certas situações contábeis.

De uma maneira simplificada resumimos o entendimento sobre a teoria da agência no parágrafo anterior (13). Um gestor pode desejar um padrão de vida elevado, financiado por salários elevados, sala com conforto e pessoal de apoio, passagens grátis na primeira classe, acesso a restaurantes caros pagos pela empresa e um bom fundo de pensão. Mas talvez não interessa ao proprietário arcar com essas despesas, pois diminui o seu lucro. Para solucionar o dilema, a remuneração do executivo pode ser atrelada ao lucro da empresa. Mas veja que o contrato de trabalho acrescentou um custo para a empresa. A literatura costuma classificar os custos relacionados com o problema de agência em custos de monitoramento e custos de ligação (14). Vamos detalhar os dois a seguir.

Os custos de monitoramento incluem mecanismos de governança corporativa, planos de compensação, auditoria interna e externa, comitês internos e as demonstrações contábeis. A auditoria é um exemplo bem interessante de custo de monitoramento (15). A auditoria, ao dar credibilidade para as informações contábeis, termina por monitorar os gestores.

Os custos de ligação estão relacionados com a tentativa de mudar os interesses do agente. É uma forma de modificar os seus interesses. As empresas podem fazer isto entregando aos gestores opções de ações; espera-se que os gestores possam se esforçar para valorizar as ações da sua empresa, pois isto resultará em um aumento da sua riqueza pessoal. Para evitar que os esforços dos gestores estejam voltados para o curto prazo, esses só podem usufruir das ações no médio prazo.

A soma dos custos de ligação e de monitoramento resulta nos custos de agência. É importante notar que os custos de agência representam uma solução intervencionista, ao contrário da proposição de que o mercado consegue resolver os problemas de agência (16).

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A literatura cita duas situações importantes da Teoria da Agência: os contratos de trabalho e os contratos de dívida (17).

Nos contratos de trabalho, a empresa, representando os seus donos, estabelece que os gerentes irão receber bônus, usualmente relacionados com o lucro líquido. Isso desperta o interesse dos administradores nos padrões contábeis, já que sua remuneração irá depender da apuração do resultado da empresa. Ademais, o gestor exerce uma grande influência sobre o sistema contábil; em alguns casos, podemos até dizer que o gestor controla a contabilidade. Isto traz a possibilidade de gerenciamento de resultados.

Mas os contratos devem também prever que as decisões do gestor podem ser afetadas pela relação com o principal. O exemplo da decisão de fazer um projeto de investimento, que renderá frutos no futuro, é uma situação possível. O gestor pode optar por investimentos com um retorno mais imediato, de modo a não afetar na apuração do lucro. Este exemplo mostra que a proposição de um contrato de trabalho como uma solução para o problema de agência entre gestor e proprietário pode ser mais complicado na prática do que parece. De qualquer forma, é importante salientar que a solução do problema de agência, via contrato de trabalho, possui, nos números contábeis, uma grande aplicação.

A figura a seguir mostra as duas situações de relação agente-principal em uma empresa. Já comentamos sobre a primeira, que ocorre na empresa, entre o acionista e o gestor. Agora vamos falar um pouco sobre a segunda situação, do financiamento.

Relação entre Principal e Agente em uma empresa (18).

O emprestador de recursos de dívida para uma empresa estaria na posição do principal. Seu desejo é que a empresa quite suas obrigações no prazo. Significa dizer que o financiador irá torcer para que a empresa tome decisões corretas que permita, no futuro, gerar recursos suficientes para isso. Mas são seus recursos que estão em jogo e o financiador pode tomar algumas medidas para isto. No contrato de empréstimo, o financiador pode exigir que a empresa tenha um desempenho compatível de quem pode cumprir suas obrigações. Os covenants da dívida, algumas cláusulas existentes nos contratos, são criados para fazer esta função (19).

No contrato de empréstimo, o financiador pode exigir que a empresa tenha um desempenho mínimo. Pode estabelecer, por exemplo, que o patrimônio líquido não seja negativo, que a empresa gere lucro ou que tenha um nível mínimo de liquidez. Estas cláusulas são criadas usando variáveis contábeis. Por este motivo, os credores são favoráveis a políticas contábeis confiáveis e conservadoras (20).

De certa forma, as cláusulas dos empréstimos restringem as ações do agente, a empresa, no caso. Isto pode incluir restrição aos investimentos, ao pagamento de dividendos. Mas também pode exigir que a empresa forneça informações sobre sua situação para os financiadores.

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Nesta altura já ficou claro que a contabilidade tem um papel importante na resolução do problema de agência. Em um artigo considerado clássico, Akerlof (21) mostrava que em certas situações isto poderia inviabilizar a existência do próprio mercado.

A auditoria, por exemplo, é um mecanismo para tentar resolver, ou reduzir, o problema de agência. A pesquisa usando a Teoria da Agência na contabilidade analisa o efeito da informação contábil em termos de incentivos das partes e ajuda a entender estas situações (22). A contabilidade ajuda a reduzir a assimetria da informação e permite afetar as ações do agente. Uma vez que a contabilidade financeira é altamente regulada, com entidades que emitem seus padrões, as exigências detalhadas, associada ao mecanismo de governança na empresa, assegura uma informação com uma razoável credibilidade (23). Em termos técnicos, a contabilidade mitiga o problema de agência.

Este papel da contabilidade não é recente. A auditoria da informação existe há milhares de anos. Quando o empregado do Faraó no Egito informava a quantidade de grãos existentes nos silos do reino, o governante enviava auditores para fazer a verificação da informação. Se não houvesse uma coincidência entre os relatos, do empregado e do auditor, alguém estava roubando. Neste sentido, a contabilidade é uma maneira importante de aumentar a confiança nos negócios; a contabilidade surgiu também para facilitar a indução da confiança. Desde os tabletes de argila da história antiga até as cláusulas dos empréstimos do mercado financeiro, a contabilidade (24).

Se “débito” tem sua origem em “dever”, a palavra crédito está associada a “confiar”.

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(1) Uma pesquisa no Google Scholar, onde temos o acesso a um grande número de trabalhos acadêmicos, revelou que os termos “agency theory” e “accounting” resultaram, na data que escrevia estas linhas, 173 mil resultados. Usei os termos em língua inglesa já que esta é a língua usada na pesquisa científica. Em língua portuguesa o resultado é um pouco acima de 6 mil trabalhos. É um número respeitável.

(2) O livro de King é uma pequena obra histórica da contabilidade. King, T. A. (2011). More than a numbers game: a brief history of accounting. John Wiley & Sons.

(3) Há uma questão histórica interessante aqui. O relatório Trueblood é do início dos anos 70, enquanto o trabalho de Jensen e Meckling é posterior. Além disto, geralmente uma pesquisa demora um certo tempo para adquirir importância. Uma possível explicação é que King estaria fazendo a afirmação como sendo relacionada com o contexto geral do SFAC 1 e não especificamente do parágrafo 50. Ver Jensen, M. C., & Meckling, W. H. (1976). Theory of the firm: Managerial behavior, agency costs and ownership structure. Journal of financial economics, 3(4), 305-360.

(4) A parte final da frase é de Scott. Scott, William (2015). Financial Accounting Theory, 7a. ed. Pearson.

(5) Isto foi apresentado em um texto anterior. Aqui temos uma breve consideração sobre o assunto.

(6) Poderia argumentar que o executivo propõe a destinação do resultado, mas cabe ao acionista a palavra final. No entanto, o executivo conhece bem melhor a empresa e pode influenciar nas políticas contábeis e na apuração do lucro.

(7) Os dois exemplos apresentados são bastante citados. Vide, por exemplo, Godfrey, J., Hodgson, A., Tarca, A., Hamilton, J., & Holmes, S. (2010). Accounting Theory. John Wiley & Sons, Inc.

(8) O termo em língua inglesa é “one man band” que corresponde a “banda de um homem só” ou “homem orquestra” para indicar uma pessoa tomando todas as decisões. Conforme o Cambridge Dictionary, disponível em https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/one-man-band

(9) Donleavy, Gabriel (2016). An Introduction of Accounting Theory. Bookboon

(10) Esta ideia está presente na literatura. Vide Scott, William (2015). Financial Accounting Theory, 7a. ed. Pearson. No livro Teoria da Contabilidade, de Niyama e Silva, o primeiro capítulo é dedicado parcialmente a este assunto. No texto não está explicitado a contribuição da Teoria da Agência para o entendimento da importância do administrador para a contabilidade. Niyama, J; Silva, C. A. T. (2020). Teoria da Contabilidade. Atlas.

(11) Mesmo aqui pode, em uma situação eventual, existir problema de agência: a filha pode ter menos apego à empresa e tomar decisões mais arriscadas que a mãe.

(12) O livro da Bíblia que conta a história recebeu o nome de Livro da Sabedoria.

(13) As duas últimas frases do parágrafo serão detalhadas a seguir.

(14) Do inglês bonding costs.

(15) Conforme Wolk, H. I., Dodd, J. L., & Rozycki, J. J. (2016). Accounting theory: conceptual issues in a political and economic environment. Sage Publications.

(16) A citação é de Eugenne Fama, um defensor do livre mercado, conforme Godfrey, J., Hodgson, A., Tarca, A., Hamilton, J., & Holmes, S. (2010). Accounting Theory. John Wiley & Sons, Inc.

(17) Conforme Scott, William (2015). Financial Accounting Theory, 7a. ed. Pearson.

(18) Adaptado de Wagenhofer, A. (2015). Agency theory: Usefulness and implications for financial accounting. In The Routledge companion to financial accounting theory (pp. 361-385). Routledge.

(19) O termo poderia ser traduzido por pacto, aliança ou convênio. Mas na literatura é comum encontrar o termo em língua inglesa. Aqui o termo cláusula seria uma opção também.

(20) Novamente Scott, William (2015). Financial Accounting Theory, 7a. ed. Pearson.

(21) Akerlof, G. A. (1978). The market for “lemons”: Quality uncertainty and the market mechanism. In Uncertainty in economics (pp. 235-251). Academic Press.

(22) Inspirado em Wagenhofer, A. (2015). Agency theory: Usefulness and implications for financial accounting. In The Routledge companion to financial accounting theory (pp. 361-385). Routledge.

(23) Usei o termo “razoável” pois nem sempre a contabilidade cumpre esta função. Entretanto, dado o número de negócios e empresas existentes no mundo, acredito que os “escândalos” contábeis são reduzidos. Muitos destes escândalos acontecem quando algumas das recomendações não foram seguidas pelos atores envolvidos.

(24) O parágrafo foi inspirado em Donleavy, Gabriel (2016). An Introduction of Accounting Theory. Bookboon.

27 fevereiro 2013

A Maldição do Agente ou do Risco Moral


Todo preposto, representante ou corretor que não colocar o capital dele junto com o seu, vai roubar você. De forma reduzida e chula, essa maldição define um clássico da moderna teoria econômica da informação conhecido como “problema da agência” [...]. O problema está em toda parte e tem a ver com a lealdade entre um indivíduo e os que trabalham para ele, o dono do capital e os mandatados para administrá-lo, o acionista e os administradores, o empresário e os seus gerentes, ou gerentes e seus subgerentes, a dona de casa e seus auxiliares, e assim por diante. Toda vez que houver “assimetria de informação” haverá um problema de incentivos: o agente que não souber muito bem qual será sua remuneração pelo esforço a favor do principal, bem como os ganhos deste, tenderá a fazer justiça pelas próprias mãos em prejuízo dos interesses que representa.

Sobre os agentes, vale dar a palavra a Iago, um dos mais odiosos vilões da galeria shakespeariana, o ajudante de ordens de Otelo, a quem traiu de todas as formas possíveis: “Eu só o sirvo para servir-me dele! Nem todos são senhores, nem são todos os senhores seguidos lealmente.” A fórmula, segundo ensina, consiste em manter-se entre os “outros”, que se disfarçam sob “o aspecto do dever” e “servindo a seus amos na aparência lucram com eles e, enchida a bolsa, saem honrados. Esses, sim, têm alma e proclamo-me um deles”. Será este o paradigma de lealdade dos agentes?

“Agente” e “principal”, designações dos participantes desse jogo, são termos da legislação dos Estados Unidos, onde os tribunais julgam regularmente inúmeros casos envolvendo divergências entre um indivíduo, o principal e o agente, a quem delegou uma tarefa. Dois tipos de arranjo fornecem soluções para as disputas entre esses personagens: de um lado, é preciso alinhar interesses do agente e seu patrão, em geral com esquemas de remuneração variável que os torne parceiros em determinado esforço; de outro, é necessário demarcar as responsabilidades em caso de insucesso. Se o agente não é responsabilizado em nenhum grau pelo fracasso, terá amplos incentivos para correr riscos excessivos, pois será sócio do principal na prosperidade, com bônus, mas não terá ônus na adversidade. Essa é a forma de o agente “colocar seu capital” junto com o de seu empregador. A variedade mais comum de problemas decorrentes do desalinhamento de interesses entre agente e principal é conhecida como “risco moral”, uma reconhecida má tradução para moral hazard, cuja expressão mais exata seria, talvez, “tentação do imoral”. Trata-se, afinal, de comportamento vicioso, porém racional, e os exemplos mais comuns são oferecidos pelos indivíduos que, ao contratarem um seguro, passam a ficar mais desleixados. Mas há coisas piores. O leitor estará correto se tiver percebido aqui um elemento importante para explicar a crise financeira de 2008: as empresas que compravam, empacotavam e vendiam as chamadas hipotecas subprime (ou de qualidade inferior) não corriam, junto com o comprador, o risco que estavam vendendo. Eram como corretores de carros usados por cuja qualidade não se responsabilizavam. O “risco moral” ou as tentações, como as descritas por Iago, não foram mitigados pela estruturação aparentemente sofisticada das operações, nem pelo veredicto das agências de risco. As operações desse tipo se avolumaram, e quando veio uma piora no mercado habitacional, que trouxe consigo um tsunami de inadimplência, os prejuízos ficaram com os compradores de papéis e não com os seus fabricantes. Os agentes apunhalaram impiedosamente seus parceiros, aqueles a quem representavam.

Franco, Gustavo H. B. (2012-12-10). As leis secretas da economia. Zahar-Brasil. Kindle Edition.