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01 junho 2022

Teoria da Agência e a Contabilidade

Os pais levam seu filho para o supermercado. A criança começa a pedir que os pais comprem diversas coisas: Quero bala. Quero este brinquedo. Compra para mim um salgadinhos

Diante da insistência da criança e querendo ensinar uma lição, os pais fazem uma proposta:

- Vamos fazer o seguinte. Você tem $$. Com este dinheiro, pode comprar o que quiser. E o troco é seu, para fazer o que quiser.

O garoto pensa um pouco e espertamente para de pedir para os pais comprarem coisas para ele, imaginando que o dinheiro pode ajudar a comprar, no futuro, um brinquedo melhor. Os pais ficam satisfeitos, pois podem fazer as compras em paz e sabendo que estão ajudando seu filho a poupar.

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A teoria da agência apareceu na literatura há cinquenta anos. E desde então tem sido amplamente usada para explicar situações corriqueiras (como a cena acima), mas também para situações mais complexas. Mais do que isto, a teoria da agência tem sido usada para propor potenciais soluções para os problemas do mundo real.

Uma pesquisa no Google Scholar (1) mostra que o termo foi citado em mais de 200 mil artigos científicos. Sua utilização tem abarcado diversos campos do conhecimento humano, como a economia, a gestão de pessoas, a ciência política e a contabilidade.

Além disso, a teoria da agência está relacionada com uma série de outros conceitos relevantes, como informação assimétrica e risco moral.

Para teoria da agência existem dois lados: uma pessoa, denominada de agente, toma decisões ou faz algo, que irá afetar outra pessoa, o principal. O agente e o principal são opostos, diante de uma determinada situação. Apesar de empregarmos o singular nas duas frases anteriores, a teoria da agência também se aplica para um conjunto de agentes e / ou um conjunto de principal (2).

O termo principal indica que este estaria em um nível superior. O termo agente indica que é a pessoa que irá agir. No exemplo do início do texto, os pais seriam o principal; a criança, o agente. O ponto relevante da teoria da agência está no fato de que assume que os interesses do principal não são idênticos aos interesses do agente. A divergência entre os interesses é que fará com que a Teoria da Agência seja tão útil e preciosa em explicar o mundo real. Será também útil para trazer algumas possíveis soluções práticas. Antes de detalhar este ponto, vamos apresentar a seguir alguns exemplos da relação principal-agente.

Na política, os representantes eleitos, como os deputados, correspondem ao agente. Os eleitores estariam no papel do principal. Os eleitores querem que seus interesses - como estradas, hospitais, aumento salarial, defesa de uma corporação e redução de impostos - sejam defendidos pelos agentes, os deputados. Mas talvez não seja este o interesse do deputado; ele pode estar mais preocupado com seu salário, sua ascensão política ou o conforto dos seus amigos.

Em uma empresa, um empregado é contratado para executar certas tarefas (3). O gestor de recursos humanos, que fez a contratação, tem uma lista de expectativas, que será diferente da relação que o empregado. Enquanto o gestor deseja que o empregado contratado fique no emprego por muitos anos, o empregado pode estar mais interessado em receber seu salário nos próximos meses, enquanto tenta achar uma posição no mercado de trabalho melhor. O gestor é o principal da relação, enquanto o empregado é o agente. E os interesses são divergentes. Temos aqui os principais elementos da Teoria da Agência.

O analista de um banco propõe a um correntista que aplique seus recursos em um CDB. O empregado do banco recebe comissão por captação e seu interesse é aumentar a comissão no final do mês. O correntista deseja que suas aplicações possuam um retorno adequado, para seu nível de risco. O principal é correntista e o agente é funcionário do banco.

Vamos resumir o que apresentamos até agora em um figura simples:

Colocamos o principal no alto, para indicar que sua posição seria “superior” a do agente. É o eleitor, o gerente de recursos humanos ou o correntista. A seta azul circular de azul mostra seus interesses. O agente, o deputado, o empregado da empresa e o analista do banco estão apresentados na posição “inferior”. Mas seus interesses, a seta laranja circular, são diferentes. As duas setas na metade da figura mostram a existência de uma relação entre eles.

Há um fato implícito na relação indicada pela Teoria da Agência: a informação assimétrica. A Teoria da Agência assume que o agente possui informações que não estão disponíveis para o principal. O analista do banco sabe que irá receber uma comissão se conseguir vender o CDB para o cliente, mas o cliente não tem conhecimento deste fato. O gestor sabe muitas coisas que estão acontecendo na empresa, que não chegam até o acionista, o principal da relação. O deputado sabe como funciona o processo político, das relações de poder, que o eleitor não conhece. A informação assimétrica é algo natural no mundo, mas na visão da Teoria da Agência traz uma vantagem para o agente. Se na relação de poder entre o principal e o agente, o primeiro geralmente é privilegiado, a presença de informação assimétrica reduz esta vantagem (4).

O empregado contratado pela empresa não diz na entrevista que pretende ficar pouco tempo, que estaria interessado em outro trabalho. Isto é uma informação que ele retém para si; se indicar isso na entrevista, suas chances de obter o emprego irão se reduzir.

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Os exemplos acima chamam a atenção para o fato de que a divergência entre os interesses do agente e do principal pode criar alguns problemas práticos. O usuário da contabilidade pode desejar uma informação, que o contador terá muito trabalho para fornecer. O principal, o usuário, pode não receber o que pretende se o contador não tiver incentivos. Na Teoria, o desvio do interesse do principal recebe a denominação de custo de agência.

Ao chamar a atenção para os interesses diferentes do principal e do agente, começam a surgir algumas possíveis soluções. O principal pode criar alguns incentivos para que a distância dos interesses seja menor.

Isto seria similar a mudar as regras do jogo, considerando que o agente possui seus interesses. Nas relações de emprego, isto pode estar refletido no contrato de trabalho. Sabendo que alguns empregados talvez não fiquem na empresa por um tempo razoável, o contrato de trabalho poderá prever uma remuneração que somente será recebida após um determinado período de tempo. O acionista pode condicionar o salário dos diretores a uma remuneração que dependa da valorização das ações da empresa. O professor pode exigir a presença do aluno como um critério de avaliação ou um desempenho mínimo para aprovação. O deputado terá um período no cargo limitado, onde sua reeleição irá depender dos votos dos eleitores.

A palavra mais importante no processo para reduzir a divergência entre os interesses e incentivo. O incentivo pode ser monetário, como um aumento no salário com o transcorrer do tempo, ou pode ser não monetário, como a exigência de um percentual de presença em sala de aula para aprovação do aluno. O estudo do incentivo diante de uma relação entre principal e agente é muito importante nos dias atuais (5).

O incentivo parece ser uma solução para certas situações. No passado eu fui proprietário de uma drogaria. Naquela época - e ainda hoje - o setor tinha dois tipos de medicamentos. O primeiro eram os produtos fabricados pelos grandes laboratórios, conhecidos do público, com elevada margem. O segundo eram produtos similares, alguns com uma qualidade um pouco menor, mas uma elevada margem. O interesse dos proprietários das drogarias era, sempre que possível, a venda do segundo tipo. Uma prática usual era pagar uma comissão para o vendedor. Como a margem do segundo tipo era superior, a comissão também o era. Isto permitia convergir os interesses divergentes.

Esta situação é similar à gorjeta de um restaurante ou a comissão de vendas de um funcionário de uma concessionária.

O que os estudiosos perceberam logo é que o incentivo cria problemas. Veja o caso do garçom que recebe uma gorjeta. A ideia do restaurante é produzir um incentivo para que o garçom possa dar um bom atendimento ao cliente, o que pode ser interessante para os negócios da empresa. O garçom sabe que tratar bem o cliente pode aumentar sua gorjeta, podendo ser um incentivo adequado mudar sua atitude, tratando bem o cliente.

A solução da gorjeta não é sempre perfeita. Temos aqui um incentivo perverso, que no popular chamamos de “o tiro saiu pela culatra”. Com efeito, em muitas situações, o incentivo perverso pode piorar uma situação entre agente e principal.

Sabendo que tratar bem o cliente pode significar uma melhor gorjeta, o garçom pode aumentar não cobrar por uma porção extra do produto. O aluno pode assinar a presença e passar a aula no celular. O vendedor de uma drogaria pode empurrar em excesso medicamentos para clientes inocentes. O gestor pode postergar investimento, visando aumentar o lucro e o preço das ações. Um jogador de futebol, que ganha por gols marcados, pode preferir uma jogada individual ao passe para um colega melhor posicionado.

Este último exemplo mostra que os incentivos podem exercer um poder negativo para o trabalho em equipe. Isto tem sido destacado nas pesquisas, que sugerem que incentivos individuais de pagamento podem reduzir a cooperação entre os colegas. Um empregado que é remunerado por atendimento evita ajudar um colega em dificuldade, pois isto reduziria suas metas.

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O estabelecimento dos incentivos é uma das tarefas mais difíceis nas situações de principal e agente. O contrato estabelecido entre os dois lados deve imaginar como isto pode gerar incentivos perversos, revelar informações sobre o esforço do agente, o monitoramento do desempenho e valorizar todos os aspectos da relação que são relevantes para o principal.

Na teoria parece simples, mas na prática é bastante complicado. Veja o exemplo de uma empresa, que decidiu criar uma maneira de pagar seus programadores. Sem saber qual o esforço dos funcionários estavam dedicando ao trabalho, a empresa optou por verificar o número de linhas de código que eram escritas por cada funcionário. O resultado é que os programas escritos começaram a ser mais longos do que o necessário.

Outra empresa resolveu remunerar seus atendentes telefônicos pelo número de atendimentos. Quando o funcionário percebia que o caso era complicado, fazia a ligação cair, sem que o cliente fosse atendido. Alguns médicos começaram a ser penalizados quando excediam a taxa de mortalidade, gerando os profissionais a assumir somentos os pacientes com menor risco. Ou professores que estavam sendo remunerados pelas notas dos testes dos seus alunos; os docentes passaram a ensinar para o teste, deixando de lado outros aspectos do processo educacional. Ou a empresa que mensura seus trabalhadores baseado na hora que ligam seus computadores; a primeira ação do empregado é ligar o computador e depois vai tomar seu café na cantina da empresa (6).

Há uma história que ocorreu na antiga União Soviética e que ficou bastante conhecida (7). Uma fábrica de pregos tinha como meta a produção de uma quantidade de unidades. Todo período tinha que cumprir a meta. O governo, o principal, estabelecia a meta conforme os seus planejadores acreditavam que era razoável. A administração da fábrica tinha que responder com a meta de produção ao final do período. Já que a meta era “unidades produzidas”, a fábrica optou por fabricar pregos pequenos. E não faltou pregos pequenos, mas os pregos grandes sumiram. Os planejadores decidiram então mudar a meta para peso. A gestão respondeu produzindo somente pregos grandes e pesados.

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Além da informação assimétrica e da teoria dos contratos, a Teoria da Agência possui vínculo com a seleção adversa, quando o agente possui informação antes do contrato ser firmado, e o risco moral, quando a informação chega depois do contrato.

Na próxima postagem iremos tratar da relação da Teoria da Agência e a Contabilidade.

(1) com o termo “agency theory” - entre parênteses e em língua inglesa - sem considerar citações e patentes, realizada no início de junho de 2022, trouxe cerca de 200 mil resultados. Um texto de Eisenhardt, de 1989, que faz considerações críticas sobre o assunto, possui 21 mil citações. Isto é muito. Eisenhardt, K. M. (1989). Agency theory: An assessment and review. Academy of management review, 14(1), 57-74. O trabalho mais lembrado sobre o assunto, de 1976, possui mais de 100 mil citações. Proporcionalmente é como se metade das citações sobre o assunto lembrassem da obra. Jensen, M. C., & Meckling, W. H. (1976). Theory of the firm: Managerial behavior, agency costs and ownership structure. Journal of financial economics, 3(4), 305-360. (Na verdade esta proporção é inadequada, pois as 200 mil citações estão restritas aos trabalhos que usam este termo em língua inglesa e as citações não, mas dá uma boa ideia da importância do texto de Jensen e Meckling.

Como ocorre em diversas teorias, há uma disputa sobre quem são os autores que criaram a Teoria da Agência. Usualmente a literatura tem atribuído a Jensen e Meckling, mas há controvérsia.

(2)A partir de agora, toda vez que falarmos no singular, é importante entender que podemos ter estas situações aplicáveis.

(3)Este é um dos exemplos mais conhecidos da Teoria, aparecendo de forma repetida na literatura.

Não é possível estabelecer qual é mais vantajoso, o poder ou a informação. Em certas situações, a informação pode ser tão assimétrica, que o agente pode prevalecer sobre o principal. Este talvez seja o caso do analista do banco e do correntista. Em outros casos, a posição do principal pode ser tão forte que a informação assimétrica não é suficiente para conferir uma grande vantagem para o agente. Tudo irá depender de cada situação.

(4) Na verdade, é importante há muito tempo. Entretanto, o interesse cresceu com a Teoria da Agência e o desenvolvimento da Teoria dos Contratos e do Desenho.

(5) Estes casos podem ser encontrados em diversas pesquisas da área. O número de problemas é bastante amplo, o que mostra o risco dos incentivos ruins.

(6) Como toda história, os detalhes vão mudando conforme a fonte.

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