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10 setembro 2022

A existência de trapaça no xadrez

Nesta semana, o mundo do xadrez teve um grande assunto: o abandono do atual campeão Magnus Carlsen em um torneio que estava sendo disputado em Saint Louis, no dia seguinte a sua derrota para um jovem enxadrista. É a primeira vez que Carlsen abandona um torneio, ele que é conhecido por sequer deixar de lado partidas que seriam empatadas.

Ao comunicar sua decisão nas redes sociais, Carlsen colocou um link para um vídeo do técnico de futebol português José Mourinho, dando a entender que ocorreu algum tipo de trapaça no jogo onde foi derrotado. Os comentários dos fãs reforçaram a ideia de que tinha ocorrido algum problema no jogo. O adversário, Hans Moke Niemann, tem 19 anos e confessou que trapaceou em jogos online de xadrez quando era mais jovem.

Um dos maiores jogadores atuais, Nakamura, fez um comentário no seu site de que provavelmente ocorreu algo estranho no jogo. Alguns outros jogadores entenderam que a derrota de Carlsen seria algo natural e que não ocorreu nenhum tipo de trapaça.

Nos dias seguintes ao abandono de Carlsen, o torneio reforçou as medidas de segurança. Era possível notar que na chegada dos jogadores ao local do torneio a revista por detectores era mais demorada.

Trapaça no Xadrez - É estranho falar em trapaça em um jogo onde as informações estão disponíveis para ambos os jogadores. Mas isto faz parte da história. Nos anos trinta, em uma disputa pelo título de campeão mundial, um dos jogadores tinha uma inclinação para a bebida. Conta a lenda que alguns amigos do adversário induziram o acesso à bebida e isto terminou por prejudicar seu desempenho na disputa.

No final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta, o candidato a disputa ao título era decidido em um torneio onde os principais jogadores jogavam entre si. Como a antiga União Soviética tinha bons jogadores, as partidas entre eles eram rápidas e o resultado, afirma-se, decidido conforme o interesse os dirigentes. Se um jogador soviético estava disputando as primeiras posições e jogava contra outro jogador soviético, em uma posição menos favorável, a partida era curta, com resultado favorável ao primeiro. Na rodada seguinte, mais descansado, este jogador tinha mais chance contra seus adversários.

O esquema funcionou até que jovem Bob Fisher fez uma denúncia e disse que só disputaria o título se a forma de escolha do candidato que desafiaria o campeão mudasse. Fisher conseguiu a mudança do critério. Fisher provou sua qualidade, vencendo dois dos maiores jogadores da época: 12 vitórias em 12 partidas.

Durante os anos setenta, no confronto entre Karpov, então campeão mundial, e o dissidente Korchnoi, este acusou o soviético de usar um hipnotizador na plateia. Isto estaria atrapalhando o desempenho de Korchnoi. Como o enxadrista conhecia os truques usados pela União Soviética, incluindo a combinação de resultados e outras acusações, a história parece ter um fundo de verdade.

Nos tempos atuais temos diversas formas de trapaça. Uma delas é criar torneios arranjados, ou até mesmo falsos, para que uma pessoa, que contratou os serviços, possa ter um desempenho suficiente para ele obter o título de Grande Mestre ou Mestre Internacional. Outra é usar aparelhos eletrônicos. Um enxadrista foi pego no banheiro com um celular, consultando um software sobre sua melhor jogada. E não podemos descartar a possibilidade de alguma forma de comunicação entre o jogador e alguém externo, que repassaria as melhores jogadas a serem realizadas. E, finalmente, não podemos descartar resultados arranjados entre jogadores.

Ocorreu Trapaça? - O jogo entre Carlsen e Neumann tem alguns aspectos curiosos. Geralmente a organização de um grande torneio convida alguns dos melhores jogadores do mundo. No caso de Saint Louis, foram dez dos melhores. Estão jogando, além de Carlsen, o primeiro do mundo, o terceiro, quarto, quinto, sexto, oitavo e nono do mundo. Completam os melhores o 12o. E o 16o. Do mundo. Também é comum convidar uma jovem promessa local. Neumann tinha um rating de 2687 antes do torneio e era o 51o. Do mundo. Uma posição respeitável, mas há outros jovens mais promissores: Fiorouja, com 2780 de rating e quarto lugar no mundo, está no torneio. Ereigsi (Índia, 19 anos, 2728), Gukesh (Índia, 2726, 16 anos), Abdusattorov (Uzbequistão, 2713, 17 anos) e Keymar (Alemanha, 2712,8, 17 anos). Mas Neumann é da casa e isto pode justificar o convite.

Uma das características de Magnus Carlsen é fazer a preparação de abertura “fora do livro”. Mesmo que a posição não seja a melhor para ele, sua preferência é causar desconforto no adversário. Quando a partida vai para o meio jogo ou final, Carlsen, com sua habilidade, consegue reverter o jogo. Um ponto que depõe a favor daqueles que acreditam ter acontecido algo estranho é o fato de que Neumann confessou que tinha estudado a abertura escolhida por Carlsen no dia. Pareceu muito coincidência.

Outro ponto é o fato de Neumann não ser muito bom em xadrez com uma menor quantidade de tempo. Seu rating em rápido é 2529, ou 272o. No mundo, e seu rating no xadrez blitz é 2672 ou 72o lugar no mundo. Apesar do jogo ter sido no xadrez tradicional, com tempo para reflexão, a posição no xadrez jogado com menor tempo é importante para casos de apuros no tempo.

A lembrança que Neumann trapaceou no passado é controversa. Estamos aqui analisando a seguinte questão: o trapaceiro do passado terá mais propensão a trapacear no futuro? Se você responde que sim, então a desconfiança faz sentido. Se você acredita que um jovem pode mudar seu comportamento com o passar do tempo, então não faz sentido voltar no tempo. Caso acredite que dependerá dos benefícios, podemos dizer que a vitória de Neumann, se não fosse contestada, teria um elevado valor, seja em termos da premiação, ou em termos da quantidade de pontos que obteria no rating. A partir, para Neumann, significou 7,3 pontos e fez o jovem romper a barreira dos 2700 de rating.

O passado também ajuda a questionar o que ocorreu. Sua evolução nos últimos meses foi fantástica o que também tornar a posição de Neumann mais duvidosa.

Logo após o torneio, Neumann deu uma entrevista dizendo que Carlsen perdeu para um idiota. Bem deselegante. Alguns acham que isto, na verdade, foi o motivo de Carlsen sair do torneio.

A favor de Neumann há vários pontos. Os jogadores do torneio passaram por uma revista na sua chegada, o que dificulta a transmissão de opiniões para os jogadores durante o jogo. Como então Neumann poderia trapacear? Além disto, a segurança ficou maior após o que ocorreu e Neumann, após o ocorrido, conseguiu três empates, contra jogadores mais fortes, e uma derrota. Isto reforça a posição de Neumann.

Ainda não é possível afirmar com segurança o que ocorreu no jogo. Mas diante de todo este contexto, eu arriscaria a dizer que algo de estranho ocorreu na partida. Talvez não a comunicação via aparelho de comunicação, mas a venda da análise por parte de alguém da equipe de Carlsen. É um grande palpite meu.

30 junho 2022

Ancoragem

 

  • Aproveite a promoção: de R$100 por R$60. 


A ancoragem é usar um ponto de referência, que muitas vezes não tem relevância lógica, para a decisão de uma pessoa. É uma mensagem transmitida de forma escondida visando influenciar alguém. Por este motivo, dizemos que a ancoragem é uma mensagem subliminar. Um aspecto importante das pesquisas com ancoragem é que muitas vezes este ponto de referência pode não ter nenhuma relevância lógica para decisão, mas mesmo assim afeta nossas escolhas. 


Vamos explicar este ponto lembrando de uma pesquisa que foi realizada há meio século por dois dos mais conhecidos cientistas da área comportamental, Tversky e Kahneman. Os dois prepararam uma pesquisa onde cada pessoa fazia um sorteio de um número entre 1 e 100. Logo após o sorteio, solicitava que respondesse a uma questão simples: qual a percentagem de países africanos na ONU? Esta é uma pergunta que uma pessoa típica não sabe a resposta precisa e muitas vezes arrisca um palpite. 


Um aspecto importante da pesquisa é que as duas etapas não possuem nenhuma relação. O sorteio de um número não deveria afetar a resposta da segunda pergunta. São perguntas que os cientistas chamam de independentes. Há um aspecto importante na pesquisa realizada pelos autores: o sorteio foi manipulado para sair somente dois números, 10 ou 65 (1). 


O grupo de pessoas que teve um sorteio com um número reduzido, de 10, respondeu, em termos medianos, que a participação dos países africanos na ONU era de 25%. O grupo que tirou no sorteio o número 65 teve uma resposta mediana de 45%, bem acima do primeiro grupo. A surpresa da pesquisa foi o fato de que o sorteio de um número, um evento que envolve “sorte ou azar”, acabou afetando a segunda parte da pesquisa, que não teria, a princípio, nenhuma relação. 


As pessoas que participaram da pesquisa, diante da dificuldade de responder corretamente sobre os países africanos, usaram o número sorteado como ponto de referência, como âncora. A resposta correta, de 20%, não era conhecida dos participantes, mas na ausência do conhecimento, o número sorteado serviu como âncora. A ancoragem é exatamente tomar decisão basedo em referência, que muitas vezes não possuem uma relação racional com minha escolha.

 

***


Outro exemplo bastante citado na literatura mostra este efeito em termos práticos. Para um grupo de respondentes foi solicitada a resposta da seguinte operação:


1 × 2 × 3 × 4 × 5 × 6 × 7 × 8


Para um outro grupo, a pergunta era a seguinte operação:


8 × 7 × 6 × 5 × 4 × 3 × 2 × 1


Observe que a primeira operação é uma multiplicação, que começa do número um e termina no número oito. A segunda operação começa com o número oito e termina no número um. Há uma propriedade da matemática que diz que a ordem não afeta os resultados. Assim, 3x2 é o mesmo que 2x3. Ou seja, o resultado das duas operações é o mesmo. Em termos mais avançados, ambas são o fatorial de 8, somente apresentados de forma diferente. 


Se usarmos a calculadora será possível obter o resultado correto, ou 40.320. Mas a pesquisa solicitava um palpite do respondente. Sendo ambas as operações iguais, espera-se que o resultado seja idêntico para ambos os grupos. 


A surpresa é que as pessoas tendiam a arriscar um número bem abaixo do resultado correto. Mas o mais surpreendente era que o primeiro grupo, cuja operação começava com o número um, arriscou um valor médio de 512, versus 2.250 do palpite do segundo grupo, onde a multiplicação iniciava pelo número oito (2). 


***


Um aspecto importante da ancoragem é que parece estar em todo lugar. Uma pesquisa publicada em 2001 usou a ideia da âncora em um julgamento. Em um caso, os juízes escutam o caso e no final o promotor pede ou uma sentença de 36 meses ou uma sentença de 12 meses. Para o primeiro caso, o resultado final foi uma pena de prisão de 8 meses a mais do que o segundo caso. 


Em outro caso, solicitou-se escrever os últimos quatro dígitos do telefone de cada pessoa. Depois, foi perguntado se o número de médicos existente na cidade seria maior ou menor que este número. Já é possível prever que pelo conceito de ancoragem ocorreu uma influência na resposta obtida na pesquisa. 


Este texto começa com a seguinte frase: Aproveite a promoção: de R$100 por R$60. Este é mais um exemplo de âncora. Se um produto custa R$60, o cliente não sabe se isto é bom ou não. Os cem reais do anúncio é a referência. 


Um truque comum usado pelos corretores de imóveis é levar os potenciais clientes em imóveis caros. O cliente provavelmente não irá comprar o imóvel mais caro, mas forma, a partir daí, uma âncora (4). Depois disso, o corretor leva seu cliente para um imóvel mais barato, que ele deseja comercializar. Este truque também é usado pelo vendedor de automóveis ou no menu de um restaurante, que coloca em destaque alguns pratos mais caros, para formar a âncora. 



***

O que explica a ancoragem? Uma possível explicação é a chamada preguiça cognitiva. Quando somos perguntados sobre o número de países africanos na ONU, imaginamos que a resposta não seja relevante para nossa vida e pensamos uma resposta de forma rápida. A âncora ajuda a resolver um problema como este. Se isto for verdadeiro, deveria existir uma relação entre a ancoragem e o teste denominado CRT (5). Este teste foi criado para tentar medir o nível de preguiça cognitiva das pessoas. 


Outra possível explicação é que em situações onde existe incerteza sobre o valor, um grande intervalo na resposta possível, a âncora é usada como um parâmetro inicial. Se não tenho ideia do número de países africanos da ONU, eu começo com a âncora próxima, no caso o número sorteado, e faço ajustes na minha possível resposta. 


Obviamente é preciso estar atento, pois usar uma variável somente para ancorar minha resposta ou decisão pode ser perigoso e conduzir a decisões ruins. A oferta da promoção parece boa, pois estarei comprando um produto por sessenta reais que tem uma âncora de cem reais. Mas talvez esta âncora tenha sido manipulada. 


A ancoragem funciona quando somos ignorantes do que está sendo solicitado. Mas pode ser poderosa em situações práticas. Uma pesquisa com carros usados mostrou a relação com a distância percorrida pelo veículo (6). Quanto mais rodado for o veículo, menor o seu preço de venda. 


O gráfico abaixo mostra esta relação. Parece bem razoável isto. Mas é possível perceber que há um buraco na relação entre as variáveis quando a quantidade rodada aproxima-se do número exato múltiplo de dez mil. 


É como se o automóvel que rodou 9.900 valesse bem mais que aquele que rodou 10.001. Uma possível explicação é a referência. O primeiro dígito parece ter muito mais influência sobre o valor do automóvel. 


Como toda heurística, a ancoragem tem um lado prático, reduzindo nosso tempo para resolver problemas e tomar decisões. De uma forma geral, produz boas respostas em muitas situações, mas pode também ser inadequada em muitas decisões. Inicialmente sabemos que a ancoragem atua mais fortemente em quatro situações possíveis. Primeiro, quando existe um valor saliente, que se destaca dos demais. Segundo, quando temos pouco tempo para tomar uma decisão. Terceiro, quando temos preguiça mental para pensar um pouco mais sobre nossa resposta. Finalmente, quando estamos lidando com valores absolutos (7). 


***

No livro Rápido e Devagar, Kahneman apresenta o seguinte exemplo de ancoragem:

Ao anunciar um preço de promoção, mas limitando a quantidade comprada, a empresa entregou uma referência para os clientes: doze produtos é um número razoável. A média comprada foi de sete unidades. A mesma promoção, sem limite por pessoa, reduziu a quantidade comprada por cliente. A âncora de doze unidades foi poderosa o suficiente para alterar a decisão dos clientes. 


O exemplo mostra que a ancoragem tem uma grande influência nas finanças, seja no mercado de capitais, na avaliação imobiliárias, no preço dos ativos, no leilão ou negociações ambíguas. 


A literatura de finanças tem chamado a atenção para as operações de divisão de ações. Quando uma empresa faz este tipo de operação, uma ação com valor de $10, passa a ter uma correspondência com duas ações de R$5. O acionista não percebe nenhuma mudança na sua carteira. Entretanto, para um investidor, pode criar uma aparência de que a ação está com preço baixo. É uma oportunidade para aproveitar (8). 


Uma pesquisa com corretores imobiliários levou-os a uma casa e solicitou sua avaliação. Para um grupo de corretores foi entregue um preço sugerido de $65.900; para um segundo grupo, o preço sugerido foi de 83.900, ou 18 mil a mais. Novamente a referência fez seus efeitos. O primeiro grupo teve uma avaliação média de $67.811 e o segundo grupo de 75.190 (9)


***

Uma situação típica de ancoragem ocorre com um investidor que comprou a ação no passado. Se os preços caíram após a compra, a referência para o investidor será o preço passado de compra (10). Veja a figura a seguir:


 


Mesmo que tenha existido uma recuperação do mercado, há uma tendência do investidor manter a ação, até que exista uma recuperação do dinheiro investido. Se o investidor tivesse comprado a ação em outro ponto do tempo, haveria mais chance de venda logo após a recuperação do preço (gráfico a seguir).


 


Talvez a ideia da âncora fique mais clara quando lembramos do leilão. O leilão é uma forma de venda de um produto que pode ser usado para venda de obras de arte, arrecadação de fundos de uma paróquia ou venda de produtos apreendidos pelo governo. 


Cada pessoa que participa de um leilão tem uma expectativa sobre o montante que poderia pagar pelo produto. Em muitos leilões, o processo é aberto com o leiloeiro - o responsável por conduzir o processo - anuncia o lance inicial. Este primeiro lance corresponde a uma âncora para os participantes do leilão. 


O primeiro lance não pode ser muito elevado, pois retiraria a concorrência do processo. Mas não pode ter um valor muito baixo, já que isto tornaria o processo mais demorado e poderia indicar, aos participantes, que o bem é pior do que eles pensam. 


  

Uma pesquisa realizada por quatro estudiosos da Universidade de Columbia mostrou que este preço inicial é relevante para o preço acordado entre as partes. De forma específica, estudou-se se o fato da oferta inicial ser um número exato ou for um número arredondado interfere no resultado final. A pesquisa concluiu que se a oferta inicial for um número preciso, do tipo $234, são âncoras mais potentes (11). 


***

Na medida que absorvemos o conceito de ancoragem, começamos a perceber suas implicações práticas e utilidade. O exemplo da caixinha de natal é resultado da experiência do autor e da percepção do conceito. Ao final do ano é bastante comum que um grupo de funcionários passe uma caixinha de Natal. Os moradores de um condomínio, os usuários do serviço ou clientes de um estabelecimento são convidados a participar. Um dos segredos de uma boa caixinha de Natal é o âncora.


No meu condomínio esta é uma prática comum. Os funcionários tinham o bom senso de solicitar a um morador mais bondoso que abrisse a lista da caixinha. O morador seria a âncora, afetando os demais na sua contribuição. Se a âncora fosse uma pessoa menos bondosa, isto afetaria o total arrecadado. 


Sabendo disso, a escolha de quem seria o primeiro a colocar o nome da lista deve ser objeto de cuidado por parte dos funcionários. 


Esta é uma situação similar àquela narrada por McRaney no seu livro Você não é tão esperto quanto pensa (12). A um grupo de voluntários foi perguntado se aceitariam o trabalho em um acampamento duas horas por semana, durante dois anos. A proposta parece que incomodou a este grupo e 100% responderam de forma negativa. Logo a seguir foi feita uma nova proposta: aceitariam ser voluntários uma única vez, por duas horas. Neste caso, metade das pessoas responderam de forma positiva. 


A primeira proposta serviu como uma âncora para a segunda solicitação. Esta segunda solicitação pareceu razoável diante do pedido de ser voluntário semanalmente durante dois anos. 


Para um outro grupo foi proposta a mesma alternativa do primeiro grupo, sem âncora. Em outras palavras, “você aceitaria ser voluntário uma única vez, por duas horas, em um período de dois anos?”. Sem ter um parâmetro, somente 17% responderam sim, um percentual bem inferior aos 50% obtido com a âncora. 


Há outras situações relatadas do uso da ancoragem em decisões cotidianas, inclusive financeiras. A existência de uma referência ajuda a entender a razão pela qual pessoas mais velhas tendem a achar o preço do ingresso do cinema tão caro. Também é a razão por que os restaurantes mostram a fotografia de certos produtos, mas não de outros. 


Entender a ancoragem pode nos dar uma vantagem em negociações. Quando existir uma transação em situação ambígua, use o conceito a seu favor e estabeleça a âncora antes que a outra parte o faça. Viu um produto que agrada, diga logo seu valor mínimo. Esta será a âncora para a negociação posterior. 


***

Em 2018, o bilionário Elon Musk colocou a seguinte mensagem na rede social: “estou considerando fechar o capital da Tesla por $420. Tenho financiamento.” A surpresa foi enorme, pois naquele momento a ação da empresa estava sendo negociada a 300 dólares. Nesta época, alguns analistas consideravam que o valor mais adequado para o preço da ação seria US$200 dólares (13). 


 


Isto provocou um aumento no preço das ações. Posteriormente especulou-se que Musk realmente não tinha capital para comprar as ações que estavam na bolsa de valores da empresa Tesla. Especulou-se também que estava sob efeito do consumo de maconha. As especulações originaram-se de uma pretensa ancoragem no preço sugerido, de 420 dólares. Nos Estados Unidos, quatro e vinte é um sinônimo de consumo de maconha, já que este é o horário usual do recreio em algumas escolas. 


Passados quatro anos, o mesmo empresário anuncia que irá adquirir as ações da empresa Twitter. Várias semanas depois do anúncio, o empresário informa sua proposta de preço de aquisição das ações: US$54,20. 




1 Ao restringir os números sorteados, a análise dos resultados fica mais fácil. O importante é que temos um número baixo, o 10, e um número acima da média, o 65. 

2 Há diversos livros que relatam este exemplo. Vide, por exemplo, Montier, James. Behavioural Investing. Wiley, 2007. O livro de Montier é um pouco desorganizado e até repetitivo. Mas vale a pena consultá-lo. 

3 Englich, T. and Mussweiler, T. (2001) Sentencing under uncertainty: Anchoring effects in the courtroom, Journal of Applied Social Psychology, 31, 1535–1551. Citado pelo mesmo Montier. 

4 Angner, Erik. A Course in Behavioral Economics. Palgrave, 2012. Este é um livro pequeno, mas bem interessante. 

5 Ver Montier, capítulo 7, para uma discussão sobre o assunto.

6 Pesquisa de Lacetera, Pope e Sydnor citada em Ruggeri, Kai. Psychology and Behavioral Economics. Routledge, 2022. 

7 Não há um consenso na literatura sobre os motivos que levam as pessoas a usar a ancoragem. O texto baseou-se em algumas das referências citadas aqui. Sobre a questão dos valores absolutos vide Pompian, Michael. Behavioral Finance and your Potfolio. Wiley, 2021. 

8 Szyszka, Adam. Behavioral Finance and Capital Markets. Palgrave, 2013, p. 193.

9 Northcraft, G. B.; M. A. Neale, 1987, “Experts, amateurs and real estate: An anchoring-and-adjustment perspective on property pricing decisions,” Organizational Behavior and Human Decision Processes 39, 84–97. O número de pesquisas que já comprovaram o papel da âncora é substancial. Neste caso, os corretores poderiam ignorar o preço sugerido, mas o resultado mostra que eles não o fizeram. 

10 Moosa, Imad; Vikash Ramiah - The Financial Consequences of Behavioural Biases (2017, Palgrave Macmillan). 

11 A pesquisa também sugere que âncoras mais precisas tendem a fazer a negociação ser menos flexível. MASON, Malia F; LEE, Alice; WILEY, Elizabeth; AMES, Daniel. Precise offers  are potente anchors: Conciliatory counteroffers and attributions of knowledge in negotiations. Esta pesquisa foi postada aqui em 2013. 

12 McRaney (Você não é tão esperto quanto pensa. O autor baseia-se o exemplo que será apresentado a seguir em MASON, Malia F; LEE, Alice; WILEY, Elizabeth; AMES, Daniel. Precise offers  are potente anchors: Conciliatory counteroffers and attributions of knowledge in negotiations​.

13 Este caso está detalhado de forma mais extensa na postagem do blog Contabilidade Financeira: https://www.contabilidade-financeira.com/2018/08/tesla-twitter-e-divulgacao-de-fato.html 


19 fevereiro 2022

História da contabilidade: formatura e gênero em meados do século XX

 Uma fotografia, de 1950, mostra uma turma de formados em contabilidade:


A legenda, do periódico Careta (ano 1950 ed 2169, p. 25), fala em duas moças - embora seja possível notar três mulheres. Mas a maioria é de homens. É interessante que esta fotografia estava em um trecho do Careta chamado "Formatura", com diversas fotografias. Na formatura de engenheiros, 100% de homens. Medicina tinha algumas mulheres. E eis um comentário do texto sobre este fato:

Acho que o tempo deu uma bela resposta para o redator, não? 

Eis outra fotografia, do Instituto Fluminense de Contabilidade, em comemoração do "Dia do Contabilista" (Revista da semana, 1940, ed 18, 46)

(O "Fluminense" aqui corresponde ao antigo estado do Rio de Janeiro, cuja cidade do mesmo nome não fazia parte). As fotografias a seguir são no mesmo instituto, agora em uma homenagem a Valentim Bouças, em um banquete no Jockey Clube:



(Interessante que já tínhamos o "Dia do Contabilista")


16 fevereiro 2022

Guerra ao dinheiro


O banco espanhol BBVA, com forte presença no México, está em guerra contra o dinheiro:

Há pouco mais de uma semana, clientes do BBVA México, o maior banco do México por base de clientes, relataram nas mídias sociais que o banco havia começado a cobrá-los pelo uso de seus cartões de débito para retirar dinheiro dos caixas eletrônicos do banco. (...)

Mas é o princípio que mais importa aqui: os clientes bancários estão sendo obrigados a pagar uma taxa para acessar seu próprio dinheiro. E a solução promovida pelo banco que permitirá que os clientes evitem pagar essa taxa é fazer login no aplicativo bancário do BBVA e encomendar o dinheiro antes de visitar um caixa eletrônico. O aplicativo gera um código para a operação solicitada pelo cliente. Então ele ou ela vai ao caixa eletrônico, insere o código e sai o dinheiro.

O BBVA chama esse serviço de "Mobile Cash" e oferece aos clientes um meio de sacar dinheiro sem precisar usar a carteira; eles apenas usam seu telefone. O problema para o banco é que muitos de seus clientes no México parecem preferir continuar usando seu cartão de débito. Então o banco decidiu dar-lhes um empurrãozinho, cobrando-os por fazer as coisas da maneira antiga.(...)

Em 2019, o diretor administrativo e vice-presidente do BBVA México, Eduardo Osuna, disse uma das metas de longo prazo do banco era eliminar completamente o dinheiro. "Setenta e quatro da população [do México] são informais e esta é uma grande oportunidade para lhes emprestar dinheiro" Osuna disse durante uma reunião de executivos-chefes em 2019. "Devemos combater o uso de dinheiro" .

Uma das vantagens, segundo o Banco, seria relação entre corrupção e uso do dinheiro (cita um estudo, mas existe mesmo esta correlação?). O texto replica:

É sempre interessante ouvir executivos seniores do banco reclamarem de como o dinheiro está facilitando a evasão e a evasão fiscais, especialmente quando o banco em que trabalham está entre os 36 grandes credores europeus acusados pelo observatório fiscal da UE em Paris usando paraísos fiscais extensivamente para reduzir sua conta de impostos.(...)

Esse é um dos aspectos mais sombrios da guerra em andamento do setor financeiro por dinheiro. Ele está sendo travado sob a bandeira da "inclusão financeira", apesar do fato de que uma economia sem dinheiro seria tudo menos inclusiva. Aqueles que mais se beneficiam de uma economia sem dinheiro são as gerações mais jovens nas classes mais fechadas, que são amplamente alfabetizadas em computadores e já usam métodos de pagamento digital para a maioria, se não todas, de suas transações. A vida se tornará um pouco mais fácil para eles.

Por outro lado, aqueles mais dependentes do dinheiro - os pobres e os idosos - de repente acharão a vida muito mais difícil. Isso já está acontecendo na Espanha, onde estão os idosos, para quem é dinheiro ainda o uso preferido do pagamento, tem que viajar cada vez mais longe para continuar recebendo dinheiro. Quanto mais velho você fica, mais difícil é viajar, especialmente se você não pode mais dirigir um carro.

Foto: Majnun

18 janeiro 2022

Rir é o melhor remédio


Concorrência

Castigat ridendo mores (correção dos costumes pelo riso) (Jean de Santeuil)

Como explicar o sucesso estrondoso de uma sátira escrita há mais de meio século contra uma determinada pessoa pública que não se mantinha nos trilhos?

Um dos diversos teóricos do riso, Vladimir Propp afirma que a essência da sátira é a derrisão dos defeitos dos homens. Afirma também, em seu livro Comicidade e riso (1992), que é possível rir do ser humano em quase todas as suas manifestações, tanto na vida física quanto na vida moral e intelectual.

A sátira seria uma espécie de arma utilizada, às vezes, para coibir excessos e desvios sociais e/ou individuais. A crítica, seja irônica, sutil, ferina ou mordaz, provoca o riso de zombaria, que é um dos tipos de riso mais frequentes na sociedade. Baltazar Guimarães (1926), meu conterrâneo e parente (temos ascendentes comuns), residente em Patos de Minas (MG), fez uma espécie de cordel satírico, com 16 vesos (4 estrofes) em redondilha maior (heptassílabos), com rimas alternadas, tipo de verso muito apreciado na poesia popular.

Para melhor entendimento de sua sátira, é mister fazer uma prévia contextualização.

Em meados do século passado, em Patos de Minas, havia um prefeito que andava enamorado por uma bela cidadã. Como era casado, contratou-a como chefe de gabinete. Destarte estaria sempre a seu lado, sem levantar suspeitas. Acontece que sua preferida era casa e afeita à poligamia. Namorava também um serralheiro, que gostaria de tê-la por perto.

Certa feita, a prefeitura abriu concorrência pública para a construção de mata-burros nas estradas rurais, com aproveitamento de velhos trilhos de ferrovia. Como se tratava de um serviço próprio de serralheiro, o namorado número 2 vislumbrou a possibilidade de ganhar a concorrência para frequentar mais assiduamente o gabinete onde ela trabalhava. Com esse intuito, montou uma firma de engenharia, contratou engenheiro e fez uma proposta com custo bem abaixo do mercado, na certeza de ser contemplado. Ciente do estratagema de seu rival, o prefeito agiu nos mesmos moldes. Arranjou outra firma para cobrir a proposta em iguais condições e com os mesmos valores. Em caso de empate, cabia a ele decidir por uma das duas. Evidentemente, escolheu a que lhe convinha.

O serralheiro, despeitado pela proximidade cotidiana do rival com o objetivo de seus desejos e indignado com sua atitude desonesta, por ter violado a proposta e feito outra igual, começou a maldizê-lo em rodas de bar. Incomodado com essas maledicências, o prefeito resolveu partir para a agressão. Casualmente, entrou em uma lanchonete onde se encontrava seu desafeto. O malfadado encontro acabou em tapas, socos e safanões.

No dia seguinte, o carro do prefeito apareceu com marca de tiro em uma porta lateral. Seu rival foi acusado de tentativa de homicídio. No entanto, o exame de balística comprovou que a bala era proveniente da arma do próprio prefeito. Baltazar Guimaraes expôs a situação de maneira jocosa, com cadência cordelística:

CONCORRÊNCIA

Em questão de Concorrência

Cada um tem seu pensar

Perdeu a pública, paciência

Disputa a “particular”

Foi feita a licitação

pra se fazer mata-burros

Dai surgiu discussão

com xingos, tiros e murros

Comenta língua indiscreta

A causa real da luta

“foi concorrência secreta

por alguém que se dis...PUTA”

TAÍ. DÂO tiro na rua

Um crime quase PERFEITO

O homem já vai à lua

e Patos não toma jeito

Baltazar datilografou os versos em quatro vias, com papel carbono. Na época não existia fotocópia. Duas dessas cópias caíram no chão, durante um campeonato de futebol da UEP (União dos Estudantes Patenses). Quem as encontrou, possivelmente algum desafeto do prefeito, resolveu fazer a divulgação. Levou-as ao escritório de Valdemar Mendes. Durante uma semana, os versos foram datilografados centenas de vezes, de 4 em 4 vias, para atender à demanda, que se avolumava como bola de neve. Formava-se fila de espera de cópias, à porta do escritório.

Os versos anônimos acabaram caindo nas mãos da imprensa da capital, acrescidos de uma nota explicativa. Posteriormente foram publicados por uma jornal carioca. A rápida divulgação causou espanto ao autor, que fazia questão de se manter no anonimato, por temer represálias do alvo da sátira, pessoa nem sempre pacífica.

Na época, Patos de Minas ainda era uma pequena cidade, local propício para fofocas e maledicências. Alguém acabou dando com a língua nos dentes, e Baltazar viu-se perseguido pela administração pública. No entanto um providencial imprevisto o livrou do castigo: o capotamento de um carro da prefeitura, na estrada de Unaí, provocou a morte dos encarregados de castigá-lo pela indevida “molecagem”.

Quem foi castigado, de fato, foi o prefeito, que se viu à mercê da maledicência pública. Na época da colonização, Padre Antônio Vieira já dizia que Gregório de Matos, com seus epigramas maliciosos, corrigia e educava mais rapidamente a sociedade brasileira do que ele com seus sermões.

Nota:

Em recente bate-papo com o autor, ele frisou a ambiguidade do título (“Concorrência” pública e amorosa) e ressaltou alguns detalhes que não devem passar despercebidos:

TAI.DÃO tiro na rua: o responsável pelo tiro, chamado Ataídes, tinha a alcunha de TAIDÃO

por alguém de se dis...PUTA: do verbo disputar (a concorrência) e ao mesmo tempo menção à vida poligâmica do pivô do conflito.

Um crime quase PERFEITO: perfeito/prefeito “quase” porque o exame de balística pôs fim à farsa de tentativa de homícidio.

O homem já vai à lua: isso aconteceu na época da primeira viagem do homem à lua. (

Do livro O Diálogo das Formas, de Jô Drumond, p. 109 a 112.)

[A primeira vez que escutei esta história foi durante minha graduação na UnB, no apartamento do meu irmão, Caio, contada pelo meu pai, o Baltazar da crônica. Ouvi de uma pessoa presente, já falecida, que lembrava que chegou a ser perseguido, pois era "poeta". Aos 96 anos, meu pai ainda lembra dos detalhes da história, que Jô Drumond (foto) transformou em crônica no livro O Diálogo das Formas) 

21 julho 2021

A contabilidade de Britney Spears


A novela da tutela de Britney Spears teve um bom relato por parte da Forbes, no que se refere a parte financeira. Eis os dados:

Durante mais de uma década de controle, Britney Spears pagou ao seu pai um salário mensal, forneceu um escritório, e deu a ele uma parte de sua fama. Ao todo, Jamie Spears recebeu pelo menos US$ 5 milhões (antes de impostos) desde fevereiro de 2008. Por causa da tutela, Britney também teve que pagar centenas de milhares – senão milhões – de dólares em taxas legais para advogados e seus tutores.

Desde pelo menos fevereiro de 2009 – um ano depois que seu pai Jamie foi nomeado tutor e encarregado de seu patrimônio – Britney teve que pagar a ele US$ 16 mil por mês, de acordo com documentos judiciais analisados ​​pela Forbes. Em 12 anos, essa compensação totalizou US$ 2,4 milhões.

Além disso, um relatório desta semana do “The New York Times” apontou para o fato de que ele também levou parte das receitas de turnês da cantora – o que poderia explicar as acusações de Britney de que foi forçada a trabalhar e se apresentar mesmo não querendo ou doente. Os pagamentos para Jamie Spears incluíram 1,5% da venda bruta de ingressos e peças de marketing dos shows “Piece of Me”, realizados entre 2013 a 2017, em Las Vegas. As apresentações arrecadaram US$ 137,7 milhões, de acordo com o Caesars Entertainment, deixando para Jamie Spears nada menos que US$ 2,1 milhões. Ainda segundo o NYT, o pai da cantora também recebeu uma comissão de 2,95% de sua turnê “Femme Fatale”, de 2011.

Além dos milhões que Britney Spears pagou ao pai como parte de um “salário” ordenado pelo tribunal, ela também teve que pagar várias outras despesas. Foram US$ 300 mil em aluguel para um escritório. Como parte de uma peculiaridade dos acordos de tutela, os tutelados muitas vezes são obrigados a pagar tanto pelos seus próprios advogados, quanto pelos dos responsáveis por seus bens.

Nos últimos 13 anos em que Britney Spears esteve sob sua tutela, essas taxas aumentaram. Embora o total que ela gastou em custas judiciais não seja público, os registros judiciais de 2018 e 2019 detalham que, entre 1º de outubro de 2018 e 31 de outubro de 2019, o escritório de advocacia Freeman, Freeman and Smiley, que representava Jamie Spears na época, a cobrou cerca de US$ 170 mil. Outro documento detalhou os honorários de seu próprio advogado, Samual Ingham, de 6 de novembro de 2016 a 10 de outubro de 2018. O total chegou a US$ 331.940,50 para 698,7 horas de trabalho – ou US$ 475 por hora.

De acordo com um pedido de 2018 do advogado de Jamie Spears, “o espólio estava quase sem fundos e equivalentes de caixa” quando a tutela começou em fevereiro de 2008. O pedido afirma que entre 2014 e novembro de 2018, o valor do espólio aumentou em US$ 20 milhões, atribuindo o crescimento em parte à administração do dinheiro de Britney Spears pelos tutores.

04 julho 2021

Havan e abertura de capital: informações


No caminho da Havan para a abertura de capital, diversos aspectos chamam atenção. Um deles é o press release de resultados, como é chamado o documento que apresenta os números da empresa aos investidores: tem apenas uma página. Na maioria das vezes, as candidatas a IPO organizam dezenas. O material da Privalia, outra varejista que tenta emplacar sua abertura de capital, por exemplo, tem 30 páginas. Também não há balanços de anos anteriores ou o prospecto da oferta da Havan no site de RI. Eles precisam ser buscados na internet. 

A Havan responde com o fato de ainda não ter capital aberto e não ser obrigatória a divulgação dessas informações. "Se a Companhia realizar um IPO, divulgará o release que julgar adequado, em linha com as melhores práticas de mercado", afirma. 

O press release, por exemplo, relata que o retorno sobre o capital investido (ROIC) passou de 39,9% para 67,2%, entre 2019 e 2010, sem explicar como a Havan chegou a esse porcentual.  

Segundo a empresa, o ganho de uma ação judicial proporcionou um valor não recorrente relacionado à base de cálculo de PIS/Cofins e ICMS, o que impactou a margem. "O item acima impactou o ROIC, que foi maior do que o ano anterior", escrevem. Foi dessa maneira também que a margem bruta de 2019 ficou igual à de 2020 e a margem de geração de caixa aumentou em 6 pontos porcentuais, mesmo com vendas menores por conta da pandemia.  

O lucro líquido foi ajustado de R$ 499 milhões para R$ 919 milhões, com um fundo de direitos creditórios (FIDC) de R$ 555 milhões que não é da Havan, mas de Hang. "Isso é um lucro líquido ajustado considerando o potencial perímetro que poderia ser a empresa que abriria o capital para investidores, caso a companhia fosse detentora do FIDC, algo que é planejado no futuro", diz a empresa. Em outras palavras, uma hipótese, na visão de um contador que mergulhou nos números e pede para não ser identificado.  

Segundo gestores consultados pelo Estadão/Broadcast também na condição de anonimato, outro problema do modelo de negócio está no fato de a rede ser muito atrelada às lojas físicas, com um conceito de digitalização que não convenceu. Porém, isso pode mudar rapidamente, já que as lojas têm conseguido encurtar o tempo de entrega das vendas online. O banco Havan também é considerado uma via de crescimento.  

Fora as questões de governança, o momento para uma abertura de capital não poderia ser mais turbulento. Hang foi convocado pela CPI da Covid esta semana, por conta de seu envolvimento em negociações para a compra de vacinas. Sobre esse assunto, em nota, o empresário disse estar "tranquilo".

Fonte: aqui

17 junho 2021

Imposto para gigantes da tecnologia

Saiu na CNN:

Depois de anos de impasse, o acordo histórico do G-7 (grupo das sete maiores economias) para tributar as empresas multinacionais com alíquota mínima de 15% pode forçar uma mudança no cenário da guerra fiscal entres os países e garantir ao Brasil um ganho de arrecadação de 900 milhões de euros (R$ 5,58 bilhões) ao ano.

O cálculo foi divulgado em simulações feitas por pesquisadores do Observatório da Tributação da União Europeia, um laboratório de investigação independente na área tributária com sede na Escola de Economia de Paris.

O estudo considera vários cenários para a implementação do imposto global. Pelas simulações, os Estados Unidos teriam uma arrecadação extra de 40,7 bilhões de euros e a União Europeia mais 48,3 bilhões de euros.

Se a alíquota subisse de 15% para 25%, a receita para a União Europeia seria de 168 bilhões de euros e os americanos ficariam com 166 bilhões de euros. Já o ganho para o Brasil subiria para 7,4 bilhões de euros (quase R$ 56 bilhões).

O governo brasileiro não fez ainda uma manifestação oficial sobre o acordo, referendado ontem pelos líderes dos países do G-7 (Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão e Reino Unido).

A posição oficial do Brasil deverá ser conhecida na próxima reunião do grupo de países do G-20 (reúne as 20 maiores economias do mundo), quando o acordo será discutido.

Na última semana, representantes da Receita Federal participaram de reunião técnica na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), que trabalha em conjunto com o G-20 para buscar solução para o que é conhecido como "erosão da base tributável" dos países com a migração do lucro das empresas para paraísos fiscais e também para a tributação da chamada economia digital.

A erosão ocorre porque as grandes multinacionais migram o "lucro" para países fiscais de baixa tributação. Essa operação é apenas contábil.

O movimento das empresas é feito no papel, sem aumento da capacidade produtiva, levando artificialmente os lucros para serem tributados com uma alíquota muito baixa.

Na prática, as multinacionais montam uma subsidiária no paraíso fiscal e fazem uma série de operações contábeis para apurar todo o lucro fiscal por lá. Durante o governo de Donald Trump, os EUA estavam na contramão do debate.

Mas, com a entrada de Joe Biden, os americanos passaram a adotar uma posição conciliatória para buscar a implementação do acordo. O acordo tem dois pilares. O primeiro, de maior interesse dos EUA, é fixar alíquota mínima para a tributação global das multinacionais de pelo menos 15%.

O segundo, de interesse dos europeus, trata da chamada economia digital e da forma de tributação dos serviços intangíveis de grandes empresas de tecnologia (Google, Amazon, Facebook e Apple), incluindo, por exemplo, algoritmos do tratamento de dados personalizados e outros serviços digitais.

"Essas características fazem com que seja mais fácil mover os lucros de um lugar para o outro e no limite não pagar imposto em nenhum", explica o economista do Ipea, Rodrigo Orair. Os EUA, onde estão as "big techs", aceitou tributar parte do lucro dessas empresas no destino (onde o serviço é consumido), e não apenas na origem.

Essa era uma demanda dos países europeus e alguns deles já estão cobrando um imposto temporário até que o acordo no G20 seja fechado - a Índia é um dos países que resistem à ideia.

[...]
Ele [Rodrigo Orair] explicou que o imposto global mínimo de 15% se aplica às empresas multinacionais. Por exemplo, caso adote o imposto, o Brasil poderá tributar suas multinacionais. As alíquotas domésticas continuarão sendo definidas localmente.

"No caso de multinacionais, se a empresa for tributada por uma alíquota inferior no país onde o lucro foi apurado (como um paraíso fiscal), o país de origem poderá cobrar a diferença para alcançar a alíquota mínima", diz Pires.

Ou seja, se uma multinacional brasileira é tributada em 2% em um paraíso fiscal, o País poderá cobrar a diferença até alcançar os 15%. Segundo ele, como no Brasil a alíquota do Imposto de Renda das empresas é alta (34%), é provável que as multinacionais continuem com o incentivo para fazer esse tipo de operação.

Já no caso dos serviços digitais de grandes empresas de tecnologia, Orair afirma que é preciso ter cuidado com a análise do impacto, porque o Brasil tributa as importações de serviços e remessas. Isso fez com que grande parte dessas empresas abrissem filiais no Brasil.

[...]
A negociação não inclui só países da entidade, mas vários outros, como o Brasil. A resistência parte não só dos países de tributação baixa, mas dos que não são sede de muitas multinacionais, aqueles em desenvolvimento. Cozendey destaca a importância do precedente ao estabelecer discussão para uma taxação mínima, que nunca foi aceita. "Isso avançou bastante.

Nunca se tinha aceitado discutir um nível de taxação", afirma. Ele chama atenção para o fato de que, apesar de se falar num porcentual mínimo, os países não são obrigados a adotar a medida.

Esse precedente é importante porque gera consequências indiretas, já que diminuiu o estímulo para que as empresas direcionarem suas sedes, seus "lucros" para países de tributação baixa.

"Todo mundo vinha demonstrando interesse em fazer essa negociação avançar, mas agora que se tem uma proposta clara, com números, os países conseguem avaliar quanto ganham e quanto perdem. Entramos numa fase de negociação digamos quantitativa de países", prevê.

Alguns países dentro do G-20 são resistentes até mesmo na questão do grau em que deveriam ter acesso na distribuição desses recursos. No Brasil, o nível de imposto das empresas é bem mais elevado, de 34% no IRPJ.

A ideia do governo na etapa da reforma tributária no Congresso, que trata do Imposto de Renda, é reduzir a taxação das corporações com a volta da cobrança dos lucros e dividendos na pessoa física. Para o ex-secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, o acordo ainda é incipiente.

Para ele, o impacto para o Brasil não será tão grande porque a tributação local é mais elevada. "Nossa tributação é maior. Impacta para países com tributação menor, como a Irlanda", diz. Na prática, significa que, se a Irlanda não subir para 15%, os países poderão cobrar a diferença. 

13 março 2021

Musk e a rede social

No passado, o executivo Elon Musk disparou algumas mensagens no Twitter que provocaram uma reação do regulador do mercado de capitais dos Estados Unidos. A SEC fez um acordo com Musk, que deveria ser mais contido nas suas mensagens.

Na semana passada, um investidor entrou com queixa contra Musk e o conselho da empresa para assegurar o cumprimento do acordo. Conforme a queixa, Musk fez várias postagens no Twitter que provocaram uma alteração no preço da ação da empresa. No dia 1o. de maio de 2020, Musk escreveu uma mensagem dizendo que o preço da ação esta alto demais. Isto provocou uma queda de 13 bilhões no valor de mercado da empresa. 

O processo mostra como mensagens de executivos em rede social pode ter uma relevância cada vez maior; isto tem influência sobre o trabalho do setor responsável pela divulgação de divulgação de informação ao mercado. O caso de Musk mostra que isto nem sempre funciona. No caso dele, seu grande número de seguidores e o fato de ser um executivo sinônimo da empresa potencializa o efeito de uma mensagem em rede social. 



22 agosto 2020

Apple chega a 2 trilhões de valor de mercado

Esta semana, a empresa Apple obteve um valor de mercado de 2 trilhões de dólares. É a segunda empresa a chegar neste patamar; a primeira foi a Saudi Aramco, logo após a oferta pública de ações. 

Neste ano de incerteza (covid, pressão política e dependência da China), as ações da Apple subiram mais de 50%. 

O fato de a fabricante do iPhone ter conseguido lucro recorde durante uma pandemia global que restringiu sua cadeia de fornecimento e limitou seu acesso aos clientes surpreendeu investidores e analistas. Quando ela informou que suas cinco categorias de produtos tiveram receitas maiores no trimestre encerrado em junho, analistas do Goldman Sachs disseram a clientes: “O que aconteceu foi que nós e o consenso não chegamos nem perto em termos do que era possível”.

Por mais excelentes que os lucros da Apple sejam, vários analistas temem que essa medida da avaliação esteja sendo forçada. A relação de preços sobre lucro (P/L) da Apple é de quase 35 vezes, a maior desde o fim de 2007, quando o lançamento do iPhone original desencadeou um crescimento sem precedentes.

Fonte: Valor de mercado da Apple chega a US$ 2 trilhõesPor Patrick McGee e Tim Bradshaw — Financial Times, 20/08/2020 

26 junho 2020

Perguntas e Respostas sobre a Wirecard

No dia 19 de junho nós postamos sobre o desaparecimento de dinheiro da empresa alemã Wirecard. No início do mês já tínhamos postado que a empresa seria um exemplo de contabilidade ruim. Nesta semana, uma série de eventos fez com que a Wirecard fosse um dos assuntos mais comentados (veja gráfico do Google Trends)

A seguir, um conjunto de perguntas e respostas sobre o caso

O que faz o escândalo da Wirecard ser tão comentado?


São vários os motivos. A empresa foi a primeira da Bolsa de Frankfurt a entrar em falência. Era um orgulho da Alemanha, sendo uma grande empresa. Mas talvez o que faz o escândalo ser comentado é como ocorreu: quase 2 bilhões de euros que a empresa afirmava existir em conta corrente em nome da empresa não existia. Geralmente esperamos que as manipulações aconteçam em ativos que são fáceis de serem manipulados e dinheiro em bancos não é o caso.

A empresa de auditoria errou?

A empresa responsável pela auditoria, a EY, afirma que ocorreu uma fraude sofisticada e que mesmo os procedimentos de auditoria não permitiram descobrir a fraude. Mas isto parece muito difícil de aceitar, já que existiam denúncias anteriores (por parte do Financial Times) e somente agora ela se pronunciou sobre o erro. Talvez tenha existido um problema de viés de confirmação por parte do auditor.

Como a gestão da Wirecard conseguiu fazer tantas pessoas de bobo?

Esta é uma questão mais complicada. Mas o apoio incisivo do regulador alemão, quando surgiram as primeiras denúncias, tem um papel muito importante. O fato de que para algumas pessoas, a denúncia de um jornal, nos dias atuais, é considerada “manipulação” e “distorção” talvez ajude a explicar. Finalmente, sendo negociada na bolsa e tendo entregue resultado nos anos anteriores, a empresa estava acima de qualquer suspeita.

O que deve acontecer agora?

A empresa possui dívidas de 4 bilhões de dólares. Os financiadores deverão ter perda total deste empréstimo. O responsável foi preso, mas pagou 5 milhões de euros para responder em liberdade o processo. Acredito que deva sobrar para o regulador alemão, que agiu protegendo a empresa. A EY talvez saia do escândalo com um pequena multa. A Comunidade Europeia já começou a investigar o caso

Como isto pode prejudicar a contabilidade?

A palavra contabilidade está sendo colocada junto da palavra escândalo. Haverá uma perda de reputação, assim como ocorreu com outros escândalos. E novamente com a forma como o mundo criou o mecanismo de certificação da qualidade da informação, que parece que precisa ser revisto - mas que provavelmente não será.

23 junho 2020

Vítima ou Ré?

A Exame publicou um texto sobre um possível derrota da Petrobras em uma contenda de arbitragem. Os detalhes do assunto estão no início do texto. O negrito é do blog. A segunda parte é mais uma discussão sobre a questão da arbitragem. A empresa sempre afirmou ser vítima da corrupção e isto ajudou a "purificar" seus pecados. A arbitragem parece não reconhecer isto.

Maio vai entrar para a história do mercado de capitais brasileiro. As fundações Petros e Previ ganharam, em disputa na Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM), uma ação de ressarcimento contra a Petrobras em razão da Operação Lava-Jato. Trata-se da primeira indenização a investidores no Brasil por perdas com ações devido à má conduta da companhia definida em arbitragem. A decisão é do dia 27 do mês passado. Disputas na CAM são sigilosas e o assunto está sendo tratado com discrição adicional. Ainda não foram definidos os valores que a Petrobras deve pagar e, por enquanto, a estatal não comunicou ao mercado a vitória dos fundos de pensão no caso. O tribunal arbitral, conforme o EXAME In, apurou, estabeleceu alguns parâmetros.

A Petrobras, conforme pessoas próximas ao tema, consultou diversos juristas e prepara-se para ir à Justiça para tentar reverter o entendimento da CAM, que pertence à B3. O prazo regulamentar para isso é de 90 dias a contar da decisão. Esse seria o motivo de a companhia não ter informado ao mercado a respeito do assunto, por acreditar na elevada possibilidade de “anulação” do resultado da disputa. Consultada, a estatal limitou-se a informar, por meio de sua assessoria de imprensa: “A sentença parcial mencionada na matéria é confidencial, não encerra a arbitragem e tampouco determina o pagamento de valores pela Petrobras. Essa sentença parcial não altera o que a Petrobras já vem comunicando ao mercado sobre o assunto”.

A Lei de Arbitragem no Brasil (9.307/96) prevê que “o árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário”. Segundo a legislação, a decisão arbitral é irrecorrível, a menos em casos de vícios no processo, como impedimento da defesa — o que torna muito rara a situação de revisão do mérito.

A dificuldade de os investidores obterem ressarcimento é recorrentemente apontada como uma das fraquezas do mercado brasileiro de capitais. A questão fica mais grave quando envolve uma companhia listada na bolsa de Nova York e os estrangeiros conseguem ser recompensados mais facilmente lá, o que cria uma distorção no tratamento dos acionistas das duas jurisdições.

Os problemas no Brasil combinam lentidão do sistema judiciário com falta de especialização (pano de fundo da criação da CAM há 20 anos), ausência de um modelo simples para ações coletivas e ainda a própria estrutura da Lei das Sociedades por Ações, que pressupõe as empresas como vítimas da má conduta de seus administradores e controladores, e não como autoras, ou seja, como rés.

Somente na CAM, a Petrobras é alvo de mais quatro ações em busca de indenização. E há ainda processos semelhantes na Holanda e na Argentina. Os questionamentos têm paralelo na ação de classe movida nos Estados Unidos em razão dos escândalos de corrupção relacionados à Operação Lava-Jato.

Nos Estados Unidos, a Petrobras desembolsou nada menos do que 2,95 bilhões de dólares em acordos para encerrar as contendas antes que fossem a julgamento. Em dinheiro de hoje, isso é nada menos do que quase 15 bilhões de reais.

O caso da estatal foi agravado porque a companhia realizou, em 2010, a maior oferta de ações do mundo até aquele momento, de 120 bilhões de reais — a petroleira saudita Saudi Aranco [sic] ainda nem sonhava com seu IPO. Na prática, a Petrobras captou recursos dos investidores enquanto a corrupção ocorria de forma desmedida em seus contratos. Além disso, a empresa aprovava investimentos que não tinham nenhuma perspectiva de retorno e, ao mesmo tempo, se comprometia com limites de alavancagem financeira que sabia que não poderia cumprir.

Entre os questionamentos ainda pendentes de decisão na CAM, estão a ação conhecida como “dos 1.500”, em que diversos investidores institucionais querem ser recompensados por suas perdas, e a primeira iniciativa de uma arbitragem coletiva, movida por uma associação, a Aidmin. Os pleitos são os mesmos da discussão das fundações, mas a vitória da Petros e da Previ não se aplica aos demais processos.

Coleção de coletivas
A CAM tem hoje três ações coletivas de ressarcimento para investidores em teste. Além da Petrobras, são alvo de pedidos de indenização a mineradora Vale, pelo desastre de Brumadinho e a forma como lidou com as informações sobre os riscos antes do rompimento da barragem, e a resseguradora IRB, pelas discussões a respeito de sua contabilidade. Tanto Vale como IRB também são alvo de ações de ressarcimento individuais na CAM.

A proposta da arbitragem coletiva é muito parecida à ação de classe americana — e nunca foi testada por aqui. As iniciativas são feitas em nome de um grupo que fica aberto a adesões. Normalmente, de investidores que possuíam ação no período da conduta alvo de questionamento, em janela que vai ser definida pelo próprio tribunal arbitral.

A discussão desse modelo no Brasil ganhou força porque o Novo Mercado e o Nível 2 de governança estabelecem, em regulamento, que o ambiente para discussões societárias é a CAM, e não o Judiciário.

Os argumentos dos casos são sempre muito semelhantes — como ocorre com as ações de classe americanas, quase sempre concentradas no debate sobre a qualidade das informações divulgadas ao mercado. O escritório de Modesto Carvalhosa é o autor das três iniciativas coletivas e da maioria das individuais também.

A tese jurídica adotada para solicitar indenização combina obrigações de compensação de prejuízos previstas no Código de Processo Civil com a regulação do mercado, Lei das Sociedades por Ações e regulação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

O modelo, chamado de class arbitration, está em debate em diversos outros países. Mas as iniciativas no Brasil estão despertando atenção. Nesta semana, é a discussão central de um evento virtual coordenado pelo Ministério da Economia, mais CVM, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Embora a adoção de um modelo de arbitragem obrigatória para Novo Mercado tenha sido comemorada lá atrás, o tempo vem trazendo críticas para essa saída. Além de ser um sistema caro para o investidor, a sistematização de um questionamento coletivo é ainda mais desafiadora do que na Justiça. A organização fica prejudicada com o fato de as disputas serem sigilosas. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) vem buscando formas de facilitar a organização de investidores.

19 junho 2020

Wirecard

A Wirecard é uma empresa alemã de produtos financeiros. Fundada em 1999, a empresa possui operações em diversos países do mundo. Em 2018, suas receitas chegaram a dois bilhões de euros.

Em janeiro do ano passado, o jornal britânico Financial Times informou que o principal executivo era suspeito de falsificação e lavagem de dinheiro nas operações asiáticas. A empresa afirmou que o jornal foi impreciso, enganoso e difamatório, afirmando que iria processá-lo por manipulação de mercado. O promotor público alemão entrou no caso contra o jornalista Dan McCrum. Meses depois, em outubro, o Financial Times publica o que seriam as planilhas contábeis internas da empresa. Também em 2019, a empresa contrata a KPMG para uma auditoria independente sobre o assunto; a empresa afirmou depois que a auditoria não encontrou nenhum problema.

Já em 2020, o auditor informou que não tinha recebido todas as informações para ter as conclusões adequadas. Com esta declaração, as ações caíram 26% na bolsa. Em junho, a sede da empresa foi revista pela polícia e ontem a empresa informou que faltava 1,9 bilhão de euros em dinheiro. O CEO renunciou em razão do comunicado de dois bancos da Filipinas sobre o dinheiro da Wirecard, depois de sugerir a existência de fraude. Ele foi substituído pelo executivo de compliance da entidade. Há um receio de que a empresa declare insolvência neste final de semana. Há uma crítica severa aos reguladores alemães, que parecem ter protegido a empresa - ao proibir especulação com a ação em 2019 e investigado os repórteres do Financial Times.

Resumindo: em 2018 o valor da empresa era de 28,6 bilhões de euros. Hoje está em 2,6 bilhões.

Contabilidade - Um aspecto importante é que a Wirecard atrasou a publicação das demonstrações anuais de 2019, depois da denúncia. Os auditores, da EY, anunciaram na quinta que faltava o dinheiro em caixa que a empresa tinha afirmado existir anteriormente.

 Em uma postagem anterior neste blog falamos da Wirecard como uma exemplo de trabalho ruim da EY, lembram? Parece que vai sobrar para o auditor também. As denúncias do FT foram do início de 2019. Há um ano e meio. E somente na quinta feira é que o auditor alertou que faltava 1,9 bilhão. Em setembro, as demonstrações apontavam um caixa de 2,3 bilhões de euros de caixa líquido. E o auditor não falou nada sobre o assunto.

A Bloomberg lembrou que existe um ditado que afirma que "lucro é opinião, caixa é fato". Mas concentrar no caixa pode deixar de lado alguns sinais. Um deles: qual a razão de um banco da Bavária deixar tanto dinheiro na Filipinas?

Outro aspecto é que a auditoria especial da KPMG tinha levantado algumas dúvidas, mas a empresa limitou a divulgar um resumo - manipulado, óbvio - do trabalho da KPMG.