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11 novembro 2008

Eliseu Martins

Outra entrevista do prof. Eliseu Martins:

Derivativos impõem desafios à regulação global
Valor Econômico - 11/11/2008

Aplaudido de pé pela platéia quando sua nomeação foi anunciada publicamente pela presidente da CVM, Maria Helena Santana, num evento em São Paulo, Eliseu Martins é uma dessas raras unanimidades no mundo da contabilidade. É dele, por exemplo, a idéia do Livro de Apuração de Lucro Contábil (Laluc). Apelidado de balanço secreto, o documento criado pela Lei 11.638 visava garantir que a convergência não trará efeitos tributários - nem para mais, nem para menos - um dos maiores desafios desse processo no Brasil. A empresa faria primeiro esse balanço, apresentaria à Receita Federal, e depois o ajustaria para a nova legislação - versão para divulgação. Dilemas da Receita, porém, enterraram o Laluc. No lugar dele, a medida provisória que garantirá a neutralidade fiscal e que está prestes a sair colocou o Lalur no lugar, da década de 70. "O Laluc ficou como a Viúva Porcina [da novela Roque Santeiro]. Foi sem nunca ter sido", diverte-se ele.

A seguir a continuação da entrevista concedida ao Valor:

Valor: Ainda restam normas para sair neste ano?
Martins: Todas já foram para audiência pública. Do que tinha programado, só ficou de fora a regra do Laluc porque, em principio, ele deve desaparecer, com a medida provisória da Receita Federal [cujo objetivo é garantir a neutralidade fiscal da nova contabilidade]. Estamos esperando a medida provisória. A expectativa é que saia rapidamente. Mas a idéia que está contida na minuta da medida e com a qual todos estão de acordo é que o Laluc não será mais necessário.

Valor: Por quê?
Martins: Lá atrás foi criado o Lalur, que servia para ter uma contabilidade societária e outra fiscal. Mas na década de 70, a Receita restringiu o uso do Lalur e então veio a alternativa do Laluc no projeto da atualização da lei. Mas tanto na minuta quanto em entrevistas, eles deram a entender que vão dar ao Lalur o uso original. Então, estamos voltando a essa origem: você faz a contabilidade, escritura de acordo com regras contábeis e aí todas as divergências com regras tributárias são ajustadas no Lalur. O Laluc era a mesma coisa só que ao contrário. Mas o caminho do Lalur é o preferível porque é menos caro e menos trabalhoso. O Laluc perdeu seu objeto, virou aquele que foi sem nunca ter sido (risos). Mas ainda assim acabou cumprindo o seu papel.

Valor: A neutralidade fiscal também ficou garantida?
Martins: A própria Receita, numa medida simplesmente espetacular, conseguiu garantir isso já desde 2008, inclusive. Por isso é tão importante sair essa medida provisória neste ano.

Valor: E isso vai exigir ajustes nas regras que já foram divulgadas?
Martins: Está em audiência pública a minuta de adoção inicial da Lei 11.638 [CPC 13]. Seguramos o quanto foi possível, esperando que saísse a MP da receita para que já incluísse as questões. Como precisamos colocar em audiência pública, fizemos sem computar as regras da MP. Mas o CPC colocou no início da minuta que ela poderá sofrer modificações caso saia a nova legislação. Se isso ocorrer, não haverá tempo para ter mais 30 dias para audiência pública. Tem uma outra regra, que é a de combinação de negócios que está em audiência pública no pressuposto de que em casos de fusão e incorporação com alienação de controle os ativos da incorporada sejam avaliados a mercado. Como isso tem uma proposta de modificação na MP, também poderá ter uma modificação.

Valor: Mas isso modifica a questão do ágio?
Martins: Não, nisso não muda nada. Para efeito do cálculo do ágio, só pode ser pelo valor de mercado, como já era.

Valor: Com a crise, há uma discussão mundial sobre o valor justo. Como o sr. vê esse debate?
Martins: A grande discussão é sobre a aplicação desse conceito. Antes, ele era chamado de valor a mercado, então, obviamente só podia ser usado quando havia mercado. Como há certas situações em que não há mercado para um ativo, resolveu-se ampliar o conceito, aplicando certos modelos matemáticos e valores calculados estatisticamente. E ainda há a alternativa de usar o conceito de fluxo de caixa descontado. Além disso, há um outro caso, dos instrumentos financeiros que não são avaliados a valor justo quando a empresa tem intenção e prova que tem condições financeiras de manter o título até o vencimento. Nesse caso se contabiliza pela curva, porque não é para ser vendido. O problema estava na rigidez das classificações. O que o Iasb fez [em norma recente] foi permitir a reclassificação dos títulos. Não mudaram os conceitos.

Valor: Mas o valor de mercado está na berlinda...
Martins: Existe uma situação que não é técnica, mas política e ética, que é a seguinte: avaliar a mercado é dar uma transparência muito forte e muito rápida. Aí vem aquela questão, isso pode acabar determinando o processo de quebra da empresa? Marcou a mercado, tem volatilidade. O balanço balança mesmo. Alguns dizem que essa volatilidade não é boa, porque começa a levar temores para uma situação que pode ser temporária. Então, é mais interessante não marcar tanto a mercado e não mostrar essas oscilações mais bruscas ou deixar isso claro?

Valor: Qual é a resposta?
Martins: A Europa continental sempre foi mais conservadora e contra a volatilidade. A União Européia aceita quase todas as regras do Iasb, mas não adota integralmente o IAS 39, que são justamente essas normas. O discurso era que os aplicadores não estão acostumados com a volatilidade dos lucros dos bancos e seguradoras. Já os ingleses e americanos estão completamente acostumados a ver prejuízos. Na época da crise bancária japonesa, ela sempre foi sentida, falada, mas, se você olhasse os balanços dos bancos, absolutamente não existia. O que aconteceu agora de diferente foi que, dentro dos Estados Unidos, que estão acostumados com o uso do valor de mercado e com a volatilidade há anos, surgiram vozes dizendo que o problema da crise era a regra contábil.

Valor: Existe um meio-termo ?
Martins: Marcar a mercado corretamente e de repente não marcar a mercado porque não tem mais mercado é uma coisa. Outra coisa é ser meio absolutista, seguidor da forma, e considerar qualquer operação como mercado também. Isso também está errado. O presidente do Iasb mesmo disse: gente, as regras já estão aí, elas já permitem deixar de marcar se o mercado não existir mais. Mas há o medo, porque isso exige da empresa uma tomada de decisão.

Valor: Então já existia a prerrogativa, o que o Iasb fez foi tornar mais explicito?
Martins: O mercado pediu que autorizasse mudar de categoria do título de marcado a mercado para carregar até o vencimento.

Valor: Se o Brasil já tivesse o padrão global e a marcação a mercado, o risco dos derivativos teria ficado mais claro?
Martins: Não tenho dúvida disso. Mas a lei anterior impedia a adoção dessa contabilização. Isso foi uma das mudanças trazidas pela 11.638.

Valor: Então, daria para prever melhor os acontecimentos recentes com as empresas?
Martins: Não conheço os casos concretos. Mas, falando de maneira genérica, três meses é um tempo enorme. Uma empresa pode publicar o balanço de 30 de junho perfeitinho, todo ajustadinho. E, em agosto, essa mesma empresa pode estar com um problema enorme. Eu me lembro muito bem de quando eu aprendi análise de balanço que se dizia para acompanhar muito bem a empresa porque ela não quebrava do dia para a noite. Não é mais assim. A partir dos derivativos, desses contratos financeiros que permitem assumir riscos tão grandes, qualquer instituição, brasileira, inglesa, de qualquer nacionalidade, em questão de dias pode ter um problema enorme sem que qualquer regra contábil tenha podido detectar porque não deu tempo.

Valor: Qual é o desafio dos órgãos reguladores que tem como função proteger o investidor?
Martins: Acho que é nisso que cada órgão regulador do mundo está pensando seriamente. Ouvi de um advogado que o estatuto de uma empresa dizia que vender um imóvel de R$ 10 mil precisava de autorização do conselho, mas assumir contratos de derivativos muito maiores não precisava. Estamos, de repente, trabalhando com estatutos do século XIX. Estamos com um sistema de informação hoje que precisa ser repensado, porque era muito bom tempos atrás.

Valor: O conceito de auto-regulação está sendo rediscutido no mundo todo. Há riscos para o Iasb?
Martins: O Iasb mostrou-se muito ágil num momento crítico como esse. Mesmo sem fazer grande mudança na essência, fez coisas que acalmaram. Em toda aquela crise americana lá atrás [Enron e WorldCom, em 2001], foi criado aquele PCAOB [Public Company Accounting Oversight Board] como órgão de Estado para ditar normas e dizer coisas técnicas sobre como auditar. Agora o que foi mudado na auto-regulação contábil? Nada. Porque não é esse o problema. O problema está na aplicação das regras. Então acredito que o Iasb vai passar por essa crise com seu poder não tocado porque vem mostrando que sabe fazer bom uso do sua capacidade de auto-regulação.

Valor: Podemos dizer que os instrumentos financeiros e os derivativos estão oferecendo um enorme desafio para os reguladores e para a contabilidade do ponto de vista da aplicação das normas?
Martins: Sim. Mas talvez hoje um dos maiores problemas esteja na divulgação dos riscos dos instrumentos financeiros, principalmente os derivativos. As empresas têm programas internos de governança corporativa para limitar os riscos. O órgão regulador exige a transparência, ele não entra no mérito se a empresa está tendo boa governança ou não, mas sim se ela está tendo transparência.

Valor: A possibilidade de as empresas não apresentarem o comparativo completo do balanço de 2008, conforme a regra colocada em consulta pública na semana passa, não prejudica os usuários?
Martins: As empresas terão que fazer uma nota explicativa para dizer os efeitos de toda essas modificações. Então, qualquer usuário, pegando essa nota explicativa, vê o que mudou naquele balanço e tem a condição de comparar.

Valor: Mas fica muito mais difícil essa comparação...
Martins: É, mas acredito que muitas empresas vão fazer o comparativo, o que elas não estão é obrigadas. Mas há alguns problemas sérios de quase impossibilidade de fazer isso [balanço comparativo de 2007]. Por exemplo: como vai fazer o valor de mercado de instrumentos financeiros em dezembro de 2007 para fazer uma aplicação completamente comparativa?

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